INTEGRALIDADE DO CUIDADO EM SAÚDE SOB A PERSPECTIVA FILOSÓFICA DE EMMANUEL LÉVINAS

 

INTEGRALITY OF HEALTH CARE FROM THE PHILOSOPHICAL PERSPECTIVE OF EMMANUEL LÉVINAS

 

INTEGRALIDAD DE LA ATENCIÓN SANITARIA DESDE LA PERSPECTIVA FILOSÓFICA DE EMMANUEL LÉVINAS

 


1Jaiza Sousa Penha

2Mayane Cristina Pereira Marques

3Santana de Maria Alves de Sousa

4Helder Machado Passos

5Patricia Neyva da Costa Pinheiro

6Adriana Gomes Nogueira Ferreira

 

1Discente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. São Luís, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9805-3802.

2Discente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. São Luís, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3341-0818.

3Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. São Luís, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0973-0646.

4Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. São Luís, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7064-0973.

5Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7022-8391.

6Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. Imperatriz, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7107-1151.

Autor correspondente

Jaiza Sousa Penha

E-mail: jaiza.sousa@discente.ufma.br. Endereço para correspondência: Avenida dos Portugueses, nº 1966, Vila Bacanga, São Luís - MA (Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão). CEP: 65080-805. Contato: +55(98) 98719-3398.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RESUMO

Objetivo: Refletir a integralidade do cuidado em saúde sob a perspectiva do pensamento filosófico Levinasiano. Método: Estudo teórico reflexivo com base nas obras “Outro modo que ser para além da essência”, “Totalidade e infinito” e “Ética e infinito” de Emmanuel Lévinas. Para discutir os conceitos propostos pelo autor, foram feitas buscas eletrônicas não sistemáticas sobre o tema, leitura crítica de suas obras e de outros estudiosos que investigaram as ideias Levinasianas. Resultados: A integralidade do cuidado em saúde propõe um olhar ampliado sobre o indivíduo, respeitando a sua singularidade (alteridade), desejos, crenças, considerando sua autonomia, através de ações centradas na sua valorização enquanto sujeito. Para Levinás, a ética, a filosofia primeira, nasce na relação face a face entre o eu e o outro (profissional-paciente), em que este se apresenta como rosto, como alteridade absoluta, que exige cuidado e responsabilidade. Conclusões: O pensamento Levinasiano remete a um contexto em que o indivíduo está no centro da atenção, assim como no cuidado integral, que norteia correta e cientificamente o trabalho em saúde como uma prática dialógica em que o outro, enquanto paciente, é corresponsável no cuidado. Esta reflexão poderá motivar profissionais e pesquisadores a observarem a integralidade em saúde sob uma perspectiva filosófica a partir de conceitos definidos por Emmanuél Lévinas.

Palavras-chave: Assistência Integral à Saúde. Enfermagem. Enfermagem Holística. Filosofia. Integralidade em Saúde.

 

ABSTRACT

Objective: To reflect the comprehensiveness of health care from the perspective of Levinasian philosophical thought. Method: Reflective theoretical study based on the works “Another way to be beyond essence”, “Totality and infinity” and “Ethics and infinity” by Emmanuel Lévinas. In order to discuss the concepts proposed by the author, non-systematic electronic searches were made on the subject, a critical reading of his works and those of other scholars who investigated Levinasian ideas. Results: The comprehensiveness of health care proposes a broader look at the individual, respecting their uniqueness (alterity), desires, beliefs, considering their autonomy, through actions focused on their valuation as a subject. For Levinás, ethics, the first philosophy, is born in the face-to-face relationship between the self and the other (professional-patient), in which the latter presents itself as a face, as an absolute otherness, which requires care and responsibility. Conclusions: Levinasian thinking refers to a context in which the individual is at the center of attention, as well as in comprehensive care, which correctly and scientifically guides health work as a dialogical practice in which the other, as a patient, is co-responsible for care. This reflection may motivate professionals and researchers to observe integrality in health from a philosophical perspective based on concepts defined by Emmanuel Lévinas.

Keywords: Comprehensive Health Care. Nursing. Holistic Nursing. Philosophy. Integrality in Health.

 

RESUMEN

Objetivo: Reflejar la integralidad del cuidado de la salud desde la perspectiva del pensamiento filosófico levinasiano. Método: Estudio teórico reflexivo a partir de las obras “Otra manera de estar más allá de la esencia”, “Totalidad e infinito” y “Ética e infinito” de Emmanuel Lévinas. Para discutir los conceptos propuestos por el autor, se realizaron búsquedas electrónicas no sistemáticas sobre el tema, una lectura crítica de sus obras y de otros estudiosos que investigaron las ideas levinasianas. Resultados: La integralidad del cuidado de la salud propone una mirada más amplia al individuo, respetando su singularidad (alteridad), deseos, creencias, considerando su autonomía, a través de acciones enfocadas a su valoración como sujeto. Para Levinás, la ética, la primera filosofía, nace en la relación cara a cara entre el yo y el otro (profesional-paciente), en el que este último se presenta como un rostro, como una alteridad absoluta, que requiere cuidados y responsabilidad. Conclusiones: El pensamiento levinasiano se refiere a un contexto en el que el individuo es el centro de la atención, así como en la atención integral, que orienta correcta y científicamente el trabajo en salud como una práctica dialógica en la que el otro, como paciente, es corresponsable del cuidado. Esta reflexión puede motivar a profesionales e investigadores a observar la integralidad en salud desde una perspectiva filosófica basada en conceptos definidos por Emmanuel Lévinas.

Palabras clave: Atención Integral de Salud. Enfermería. Enfermería Holística. Filosofia. Integralidad em Salud.           


 

INTRODUÇÃO

O trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde, inclusive de enfermagem, principalmente nas instituições hospitalares, tem se caracterizado como segmentado, mecanicista, centrado na realização de procedimentos e com supremacia do uso de tecnologias. Tal fragmentação da assistência, com enfoque biologicista e supervalorização das especialidades, é resultado de influências advindas do modelo de trabalho hegemônico taylorista-fordista(1,2).

Esse modelo muito presente no setor terciário da economia, no qual o setor saúde está inserido, sofreu consequências que previam a lógica da acumulação de capitais, uso intenso da tecnologia, não integração interdisciplinar entre os profissionais e alienação do trabalho. Esses fatores concorriam para a caracterização do serviço em saúde como artesanal, e a satisfação do sujeito não era considerada(3).    

Tais condições são contrárias ao conceito de integralidade, como ordenadora do cuidado, e um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), entendida como um conjunto articulado e contínuo de ações preventivas e curativas, em todos os níveis de complexidade, individuais ou coletivas(4). Esta prevê um olhar ampliado e holístico sobre o indivíduo, respeitando a singularidade, desejos e crenças e considerando a autonomia. Implica em ações de promoção, prevenção e recuperação de agravos, centradas na valorização da pessoa que recebe esses cuidados(1,2).

Nesse sentido, é na formação dos trabalhadores em saúde que a integralidade deve ser incentivada e defendida. Para que a ideia de assistência hospitalocêntrica e biomédica seja desfeita é necessário que as instituições de ensino superior e o processo de ensino-aprendizagem discutam sobre a integralidade enquanto princípio norteador do SUS, conteúdo fundamental para direcionar as suas ações profissionais(5).

Estudo desenvolvido com acadêmicos de Enfermagem a fim de conhecer suas percepções sobre a integralidade, identificou fragilidades na aplicação desse princípio no processo de desenvolvimento acadêmico. Isto reforça a importância e o desafio na formação de enfermeiros e demais profissionais, que precisam ser capacitados com vista às necessidades dos indivíduos em ações de promoção e prevenção de agravos(6).

   Diante dessa realidade, é possível refletir a integralidade e suas características sob a ótica da filosofia de Emmanuel Lévinas. Para este filósofo, o outro se apresenta como rosto, ou seja, é a representação de uma alteridade absoluta, dando um novo sentido ético e valorizando o ser humano. Lévinas considerou a ética como filosofia primeira, ou seja, a ética está antes, aquém de todo e qualquer pensamento racional filosófico ou científico. Com isso, buscou-se responder à seguinte questão de pesquisa: “Como conceitos filosóficos propostos por Emmanuel Lévinas podem relacionar-se com a integralidade do cuidado em saúde?”

Neste sentido, a partir de conceitos estabelecidos por Emmanuel Lévinas, este texto objetivou refletir a integralidade do cuidado em saúde sob a perspectiva do pensamento filosófico Levinasiano, podendo ser um instrumento para estudantes e profissionais de Enfermagem, ampliando suas interpretações e entendimento sobre a temática.

 

MÉTODO

            Estudo teórico reflexivo sobre a integralidade do cuidado em saúde, enquanto princípio do SUS, relacionando-a com alguns conceitos definidos pelo filósofo Emmanuel Lévinas. Para embasar esta reflexão foram utilizadas as obras “Autrement qu`être ou au-delà de l`essence7 (Outro modo que ser para além da essência), “Totalité et Infini8 (Totalidade e infinito) e “Ética e infinito”9. Além disso, foram realizadas buscas eletrônicas não sistemáticas no mês de dezembro de 2021 na plataforma Google Schoolar, através dos termos “Emannuel Lévinas” e “health care”, a fim de identificar produções de outros autores que investigaram as ideias Levinasianas e que pudessem ser utilizadas nesta reflexão.

            Não foram estabelecidos recortes temporais e foram incluídos artigos e livros que tratassem da temática, nos idiomas inglês, português ou espanhol, disponíveis na íntegra. Foram excluídos os materiais que não apresentaram definições que pudessem ser relacionadas à integralidade em saúde.

  

RESULTADOS

            Foram utilizadas oito referências para discutir e correlacionar os conceitos levinasianos de alteridade, responsabilidade, proximidade, justiça e acolhimento e a integralidade do cuidado em saúde, apresentados nos resultados e discussão deste texto reflexivo.

Emmanuel Lévinas nasceu na Lituânia e teve o seu trabalho influenciado por Husserl e Heidegger, falecendo em 1995. O filósofo apresentou grandes contribuições com suas obras e estabeleceu a relação ética a partir do outro, sendo instituída através do “face a face”, do encontro entre duas pessoas ou mais. Essa relação é complexa e permeada pela alteridade, ou seja, o estar disponível para o outro, que é distinto, mas merece ser levado em consideração, respeitado e entendido na forma como a qual se encontra, sem indiferença ou supressão de suas particularidades(8,10).

            Esse outro é representado pelo rosto, pelo encontro primeiro, um contato original, em que o outro é completamente estranho, é diferente e infinitamente transcendente, trazendo a sua alteridade e, com isso, provocando exigências morais ao eu. É na condição de infinito que o outro se protege das intenções totalizantes do eu.                

            Nesse sentido, é possível estabelecer uma relação entre os conceitos apresentados pelo filósofo e a integralidade no cuidado em saúde. É nessa perspectiva que ela prevê olhar o paciente-outro “como um ser completo, sem desconectá-lo de suas dimensões sociais, familiares, espirituais, ambientais, políticas e históricas(11:3), de maneira holística.

            Portanto, o paciente-outro é um ser complexo, que não pode ser distanciado do seu amplo contexto de vida, não devendo ser analisado apenas pelos sintomas ou pela doença, pois isso se opõe aos critérios da integralidade. Para Lévinas, o rosto que representa o outro inaugura no eu o sentido ou um apelo de responsabilidade(7,11,12,). Antes de nossas atitudes racionais e técnicas, a primeira experiência verdadeiramente humana é moral, e se dá na ordem da sensibilidade, do frente a frente. A responsabilidade não resulta de um cálculo racional, mas de uma resposta a uma pergunta imediata.

            Relaciona-se a esse contexto de paciente-outro, o próprio conceito da palavra cuidado, no sentido de colocar atenção, pensar, demonstrar interesse, desvelo e preocupação. Aquele que cuida passa a dedicar-se e importar-se com aquele que é cuidado, sendo solícito, participando de sua vida, sofrimentos e alegrias. Assim a atitude de cuidar com ética provoca inquietação, preocupação e responsabilidade.    

            Entende-se, portanto, que o outro que está diante de mim (eu) é um corpo, que apresenta sensibilidade, que possui uma vida e é sensível diante dos outros e do ambiente. Um outro que necessita ser amparado, cuidado e protegido. Por tudo isso não deve ser tratado como objeto(8). Desta relação nasce a responsabilidade ética, envolvida pelo cuidado e respeito, em que o eu cuida do outro.

            Dessa maneira, Lévinas contextualiza o significado de proximidade, que se estabelece por meio do acolhimento ao outro, responsabilizando-se por ele e permanecendo indiferente a alteridade do outro: “(...) acolher o outro é colocar minha liberdade em questão.” (8:84). Para tanto, é necessário que a ideia de proximidade comece no interior daquele que irá realizar a assistência em saúde, assim como no cuidado integral, que exige que profissionais e gestores se disponibilizem a cuidar e desenvolver ações de forma responsável, respeitosa e humanizada(11,12). É importante ressaltar que proximidade não significa igualdade ou fusão, nem a curta distância no tempo e espaço, mas a vulnerabilidade do eu diante da alteridade (7,13). A ideia de proximidade na filosofia levinasiana mantém as distâncias entre a identidade do eu e a alteridade do outro.

            Esse outro (paciente-outro), o estrangeiro, o diferente, por assim dizer, o além do ser, é que permite a existência dessa relação ética, sendo possível o acolhimento(14). Portanto, é nesse contexto em que o outro que se apresenta ao eu com uma perspectiva de responsabilidade.   

            Corroborando esse conceito, a Política Nacional de Humanização aponta para a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, com assistência integral à saúde, livre de preconceitos ou privilégios de qualquer natureza e ampla participação social(15,16). Isto reforça a ideia de que, no cenário assistencial, o cuidar do paciente-outro é percebê-lo como alteridade, como outro-sujeito singular, em que o eu exibe responsabilidade sobre o outro(17).

            Quando se fala em integralidade, enquanto princípio do SUS, reitera-se esta como um dos eixos da Atenção Primária em Saúde (APS), que é a porta de entrada do sistema de saúde, a qual deve organizar e direcionar o fluxo de atendimento dos pacientes dentro da rede de cuidado, tendo em vista que suscita assistência em todos os níveis de complexidade. Desse modo, gestores e profissionais da APS devem colocar o indivíduo no centro da atenção, dando-lhe prioridade, considerando a sua singularidade.

            Nesse sentido, analisou-se o conceito de justiça conforme o pensamento de Lévinas. Para o autor, ela nasce a partir do momento em que o eu se encontra ou percebe o outro, enquanto alteridade, estabelecendo uma relação de responsabilidade. A justiça adquire o sentido de justificar-se no contexto da ética levinasiana, justificar-se frente às demandas do outro. Paralelamente, no atendimento em saúde, os profissionais precisam a todo momento avaliar suas ações sob o parâmetro da justiça. Assim, deve-se priorizar aquele paciente-outro, não somente por sua gravidade, mas em todos os aspectos existenciais, utilizando-se ainda dos conhecimentos e habilidades técnicas e científicas para cuidar dessa alteridade(18).

            “Fez-se necessária a justiça, ou seja, a comparação, a coexistência, a contemporaneidade, a reunião, a ordem, a tematização, a visibilidade dos rostos e, portanto, a intencionalidade e o intelecto(7:158). É com essa percepção de justiça, caracterizada pelo autor, que os profissionais de saúde devem considerar o outro, pois a justiça tem sempre como início e fim a responsabilidade.

            Com essas considerações, para o atendimento em saúde integral, em que o indivíduo necessita ser percebido de maneira holística, os profissionais, no contexto em que estão inseridos, precisam refletir as ações numa perspectiva ética, tratando com justiça e humanização as alteridades, adaptando e personalizando suas atitudes conforme a necessidade do paciente-outro.

            Numa relação mútua, dialógica, entre o eu e o outro, entende-se que o primeiro precisa do segundo, tendo em vista que é quem depende do outro para a humanização, pela capacidade de responsabilizar-se por esse outro(14). Levinas afirma ainda que essa é uma relação não simétrica, ou seja, um é responsável por outro sem esperar reciprocidade(9). Nesse sentido, no cenário profissional-paciente, o eu profissional depende do paciente-outro para a sua humanização. Em suma, é ele, o paciente-outro, que define a ação do eu-profissional, na medida em que é aquele que, com suas demandas, exige a ação deste.   

Sendo, então, um dos objetivos da integralidade do atendimento em saúde, o olhar ampliado sobre o indivíduo que necessita de cuidados, em que o profissional precisa acolhê-lo, não sob o enfoque biologicista, mas em todos os aspectos de vida que o envolve, a epifania do rosto defendida por Lévinas, nos leva a entender que seria necessário romper com a indiferença, permitindo-se conhecer e entender o outro.

            No entanto, a assistência em saúde apresenta-se verticalizada, provocando um distanciamento e afastando as pessoas, tanto na relação entre os profissionais, quanto entre estes e os pacientes e familiares. Isto compromete a qualidade do atendimento em saúde, que precisa se reorganizar, especialmente no que tange ao relacionamento interpessoal dos atores envolvidos, representando um desafio diário, gradual e coletivo(19).

            Conforme o pensamento Levinasiano, e em contrapartida ao que se consideram desafios para a integralidade do atendimento em saúde, é no rosto do outro que estão expostas as suas preocupações, necessidades, em que o eu não pode ser alheio a isso, não pode ser insensível à realidade, sendo, então, ético.

O “não matarás”(8) de Emmanuel Lévinas significa não exatamente a definição literal da expressão, mas o não impedir a vida e os prazeres do paciente-outro, as suas necessidades mínimas de conforto, realização, bem-estar, entre outras necessidades inerentes à sobrevivência, incluindo os aspectos sócio-histórico-culturais, não reduzindo-o, pois se apresenta em diversas formas: é o órfão, o estrangeiro, a viúva, o pobre.   

 

DISCUSSÃO

            A integralidade do atendimento em saúde, apesar de constituir um dos princípios doutrinários do SUS desde 1990, ainda é um desafio para instituições e profissionais da assistência. Transformar o trabalho em saúde fragmentado, mecanizado, com enfoque biologicista, que enfatiza sinais e sintomas, em uma visão holística do indivíduo, considerando a cultura, crenças, história de vida, grau de instrução e sentimentos, faz parte dos objetivos do cuidado integral.

            Além disso, a integralidade prevê a assistência para o indivíduo e para a coletividade, incluindo ações de prevenção de agravos, desde a atenção básica, até os níveis secundário e terciário no sistema de saúde. Considerando que os profissionais de Enfermagem possuem autonomia para atuar em todos esses níveis de atenção, faz-se necessária a reflexão do cuidado integral que deve ser desenvolvido, sob o olhar filosófico.  

Assim, a enfermagem holística direciona as práticas para as necessidades físicas, sociais, emocionais, econômicas e espirituais do outro, diante do processo de enfrentamento do adoecimento e do efeito sobre a capacidade de autocuidado. Portanto, conforme o preconizado por Florence Nightingale, precursora da enfermagem mundial, espera-se responsabilidade, compaixão, compromisso e pensamento crítico no ser e no agir dos enfermeiros(20).

            Observa-se que a filosofia de Emmanuel Lévinas pode relacionar-se à integralidade, quando destaca a ética como filosia primeira e reafirma que esta nasce imediatamente após o contato entre o eu e o outro, no face a face, em que a vida assume o sentido verdadeiramente humano. Este outro se apresenta como rosto, como alteridade absoluta, transcendente, uma realidade imediata, que exige uma noção de responsabilidade, de justiça, de acolhimento, de proximidade. Proximidade que não é ausência de distâncias, mas a não indiferença à presença do outro que me olha(7). A preservação da relação entre uma subjetividade e a alteridade requer separação. Só existe relação à medida em que os termos dessa relação permanecem separados.

O paciente-outro é visto como uma pessoa singular, a partir do momento em que o outro fala e se expõe ao eu na tentativa de ser compreendido, o eu não pode mais ser ausente, insensível, não pode deixar de se sentir responsável. O rosto do outro será sempre uma apresentação com incógnita e, portanto, exigindo do eu-profissional uma postura de abertura para o acolhimento, por vezes tendo que se desfazer dos protocolos e dinâmicas estabelecidos para o tratamento. Neste sentido, compreende-se que, no cuidado, o profissional está à disposição para a novidade do rosto do outro. Portanto, conforme a dimensão ética de Lévinas, os profissionais de saúde devem assumir a responsabilidade pelo outro, atendendo aos seus apelos (necessidades) e assumindo o cuidado(21).

O objetivo da integralidade consiste em atingir o cuidado em saúde, baseando-se nas necessidades do sujeito a ser cuidado, no conhecimento dos profissionais envolvidos na ação e também os demais, que atuam na gestão e estruturação dos serviços de saúde, tendo como foco ampliado o ser humano e suas necessidades(1,22).

Em contrapartida, estudos demonstram que o atendimento em saúde no Brasil ainda é inadequado nesse sentido, com práticas profissionais que priorizam a clínica, supervalorizando aspectos biológicos, impessoais, abrindo mão das necessidades que o indivíduo apresenta, tornando-o insatisfeito e inseguro(23). Um bom exemplo seja a disposição e o tempo de escuta dos profissionais de saúde aos pacientes em consultas e procedimentos.     

            Portanto, é necessário que aconteçam mudanças na forma de produzir o cuidado, de modo a evitar a ênfase nas especializações e centrado no profissional como detentor de saberes, objetivando abranger a exigência do outro e de sua família, o que perpassa pela Enfermagem, que busca promover uma assistência horizontal e interdisciplinar, e não em práticas verticais e burocráticas que enfatizam a produção de serviços e tarefas(1).

            É no encontro entre enfermeiro e paciente em que o eu profissional encontra-se diante de suas prerrogativas e limites, conhecimentos e habilidades necessárias para a tomada de decisões, frente aos direitos do outro, que apresenta uma necessidade real, seja uma doença ou uma dúvida a ser esclarecida por quem lhe oferece assistência(24).

            Portanto, para Levinas, cuidar do outro exige grande responsabilidade, a qual o enfermeiro não pode se eximir, não podendo ser insensível ao apelo do outro que necessita ser cuidado integralmente, sendo este um dever moral da profissão. Por isso, a prática desses profissionais sempre possuirá como fim a pessoa humana em todas as suas dimensões(25).

           

CONCLUSÕES       

O pensamento Levinasiano induz a um contexto em que põe o indivíduo, aquele que clama por cuidado, no centro da atenção, não sendo visto como uma doença ou como um objeto, orientando correta e cientificamente o trabalho em saúde, considerando o cuidado integral como uma prática dialógica em que o outro, enquanto paciente, possui corresponsabilidade pela sua própria saúde. Portanto, o desafio de cuidar integralmente, além dos usuários e suas famílias, envolve profissionais e gestores.

Dessa forma, esta reflexão poderá embasar o desenvolvimento de outras pesquisas na área da Enfermagem, corroborando e sustentado a cientificidade de suas ações práticas, enquanto profissão e disciplina, provocando e instigando profissionais e pesquisadores a observarem a assistência integral à saúde sob uma perspectiva filosófica adaptável aos conceitos de alteridade, justiça, responsabilidade e da relação eu-outro, definidos por Emmanuel Lévinas.

Considerou-se como limite do estudo a dificuldade em encontrar publicações na área da Enfermagem que contextualizassem a integralidade do cuidado em saúde a partir do embasamento filosófico do autor, ao passo que isso reforça a relevância deste manuscrito para o avanço do conhecimento na área, propondo ainda novas investigações acerca do assunto.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

 

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Submissão: 2022-01-25

Aprovado: 2022-04-29

 

Fomento e Agradecimento:

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Bolsa de mestrado concedida a Jaiza Sousa Penha. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES – Processo 88887.493433/2020-00).

Bolsa de mestrado concedida a Mayane Cristina Pereira Marques. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES – Processo 88887.493534/2020-00).