ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM A UMA PACIENTE SURDA HOSPITALIZADA: RELATO REFLEXIVO DE UMA EXPERIÊNCIA

NURSING CARE FOR A HOSPITALIZED DEAF PATIENT: A REFLECTIVE REPORT OF AN EXPERIENCE

CUIDADO DE ENFERMERÍA A UNA PACIENTE SORDO HOSPITALIZADO: RELATO REFLEXIVO DE UNA EXPERIENCIA


 

1Samara dos Reis Nepomuceno

2Jocilene da Silva Paiva

3Hilderlânia de Freitas Lima

4Beatryz Holanda Bezerra

5Vanessa Teixeira de Freitas Nogueira

6Emília Soares Chaves Rouberte

 

1Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção-CE, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9665-1446.

 

2Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção-CE, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8340-8954.

 

3Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção-CE, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3755-0340.

 

4Enfermeira. Residente em Saúde Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Ceará, Fortaleza-CE, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8800-9277.

 

5Mestre em Psicologia. Professora efetiva de Libras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção-CE, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1611-2774.

 

6Enfermeira. Pós-Doutorado em Enfermagem. Professora associada do Curso de Graduação e do Mestrado Acadêmico em Enfermagem da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção-CE, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9758-7853.

 

Autor correspondente

Samara dos Reis Nepomuceno. Avenida da Abolição, 3 - CEP 62790-000, Redenção, Ceará, Brasil. +5585991236883. E-mail: nepomucenosamara@gmail.com.

 

 

RESUMO

Objetivo: Relatar, numa perspectiva reflexiva, a experiência vivenciada por internos de enfermagem no seu processo prático de formação a assistência de enfermagem a uma paciente surda hospitalizada. Método: Tratou-se de um estudo descritivo do tipo relato de experiência. A experiência foi vivenciada em um hospital de referência em cuidados intensivos cardiopulmonares do Estado do Ceará, durante o internato hospitalar de acadêmicos de enfermagem de uma instituição de ensino superior federal, no ano de 2018. Essa experiência versa sobre as reflexões obtidas a partir da assistência em saúde prestada a uma paciente de 50 anos, surda, admitida em uma Unidade de Terapia Intensiva. Foi possível acompanhá-la por dez dias. Resultados: Os discentes se depararam com dois grandes desafios: implementar os conhecimentos técnicos-teóricos baseados em evidência científica estudados durante a graduação; e prestar uma assistência de alta complexidade para uma paciente surda. Ambos os desafios foram importantes para processo de aprendizagem dos internos. Contudo, pode-se considerar que o mais complexo foi estabelecer uma comunicação eficaz na assistência. Considerações Finais: A equipe da unidade de saúde prestou, mesmo com suas limitações, uma assistência de qualidade à paciente, pautada nos princípios éticos, morais e bioéticos. A experiência e reflexões descritas foram importantes para a aquisição e consolidação de conhecimentos técnicos-teóricos e o aprimoramento do julgamento clínico e crítico dos internos de enfermagem e de seus supervisores.

Palavras-chave: Pessoas com Deficiência Auditiva; Barreiras de Comunicação; Comunicação não Verbal; Línguas de Sinais; Cuidados de Enfermagem.

 

ABSTRACT

Objective: To report, in a reflective perspective, the experience lived by nursing interns in their practical process of training nursing care for a hospitalized deaf patient. Method: This was a descriptive study of the experience report type. The experience was lived in a reference hospital in cardiopulmonary intensive care in the State of Ceará, during the hospital internship of nursing students from a federal higher education institution, in 2018. This experience deals with the reflections obtained from the assistance in health care provided to a 50-year-old deaf patient admitted to an Intensive Care Unit. It was possible to accompany her for ten days. Results: The students faced two major challenges: implementing the technical-theoretical knowledge based on scientific evidence studied during graduation; and provide high-complexity care for a deaf patient. Both challenges were important for the interns' learning process. However, it can be considered that the most complex was to establish effective communication in care. Final Considerations: The health unit team provided, even with its limitations, quality care to the patient, based on ethical, moral and bioethical principles. The experience and reflections described were important for the acquisition and consolidation of technical-theoretical knowledge and the improvement of the clinical and critical judgment of the nursing interns and their supervisors.

Keywords: Persons With Hearing Impairments; Communication Barriers; Nonverbal Communication; Sign Language; Nursing Care.

 

RESUMEN

Objetivo: Relatar, en una perspectiva reflexiva, la experiencia vivida por internos de enfermería en su proceso práctico de formación en el cuidado de enfermería a un paciente sordo hospitalizado. Método: Se trata de un estudio descriptivo del tipo relato de experiencia. La experiencia fue vivida en un hospital de referencia en cuidados intensivos cardiopulmonares en el Estado de Ceará, durante el internado hospitalario de estudiantes de enfermería de una institución federal de enseñanza superior, en 2018. Esta experiencia trata de las reflexiones obtenidas a partir de la asistencia en salud brindada a Paciente sordo de 50 años ingresado en una Unidad de Cuidados Intensivos. Fue posible acompañarla durante diez días. Resultados: Los estudiantes enfrentaron dos grandes desafíos: implementar los conocimientos técnico-teóricos basados ​​en evidencia científica estudiados durante la graduación; y brindar atención de alta complejidad a un paciente sordo. Ambos desafíos fueron importantes para el proceso de aprendizaje de los pasantes. Sin embargo, se puede considerar que lo más complejo fue establecer una comunicación efectiva en el cuidado. Consideraciones finales: El equipo de la unidad de salud brindó, aún con sus limitaciones, atención de calidad a la paciente, basada en principios éticos, morales y bioéticos. La experiencia y reflexiones descritas fueron importantes para la adquisición y consolidación de conocimientos técnico-teóricos y la mejora del juicio clínico y crítico de los internos de enfermería y sus supervisores.

Palabras clave: Personas con Deficiencia Auditiva; Barreras de Comunicación; Comunicación no Verbal; Lengua de Signos; Atención de Enfermería.


 


INTRODUÇÃO

Nascer com deficiência auditiva ou perdê-la ao longo da vida influencia diretamente, de inúmeras formas, no cotidiano de um indivíduo, e o principal elemento prejudicado é a comunicação(1). Segundo o censo demográfico brasileiro do ano 2000, existem cerca de 24,5 milhões de pessoas com deficiência auditiva no país e isso equivale a 14,5% da população mundial(2). Desses milhares de pessoas com deficiência, 5.735.099 são pessoas com deficiência auditiva(2).

Esses dados epidemiológicos sinalizam a importância de publicar mais estudos sobre essa população, especialmente no que se refere ao processo de comunicação entre esses sujeitos e os profissionais da saúde não surdos. Isso se fundamenta porque a deficiência de qualidade na comunicação entre esses atores interfere negativamente na assistência que lhes é prestada ao buscarem atendimento nos serviços de saúde(3).

Os estudos mais atuais apresentam a importância dos profissionais da saúde, dentre eles os profissionais que compõem a equipe de enfermagem, se capacitarem para promoverem um atendimento digno e livre de riscos e danos para esse público(4). Esse apelo é plausível porque há uma considerável dificuldade na comunicação entre enfermeiros e pacientes que possuem deficiência auditiva, especialmente no que se refere as habilidades de comunicação gestual-visual(5).

Da mesma forma, os estudantes da área da saúde, dentre eles os internos de enfermagem, devem receber essa capacitação, conforme recomenda a diretriz Comunicação Competente do Aconselhamento em Saúde. Essa diretriz versa sobre a assistência em saúde adequada através de uma comunicação eficaz aos usuários do sistema único de saúde, seja surdo, idoso ou mudo, que tenha dificuldade em articular as palavras ou com baixa escolaridade(6).

Em busca de suprir as demandas da comunidade surda, a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 foi sancionada. Essa lei regulamenta a garantia, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, de formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil(7).

É importante evocar que pacientes hospitalizados devem receber um cuidado integral horizontal interdisciplinar, oferecido por uma equipe multiprofissional de saúde. O enfermeiro, nesse cenário, precisa manter-se organizado, sistematizar o cuidado e coordenar a equipe para a realização de todos os procedimentos devidos. Embora a presença das alterações psíquicas condicione dificuldades que implica na comunicação profissional e paciente(8), ainda mais em se tratando de um paciente com deficiência auditiva, deve-se considerar a utilização de estratégias de comunicação eficazes com esses usuários para tornar a assistência ofertada mais humanizada.

Partindo da conjectura de que ainda há pouco enfoque na difusão da Libras na formação acadêmica dos profissionais da enfermagem, de que o paciente surdo hospitalizado necessita de um atendimento integral resolutivo especializado e sem riscos de danos, e de que há uma inópia de estudos que descrevam a experiência de estudantes e profissionais da enfermagem no atendimento ao paciente surdo, considerou-se relatar e refletir sobre a vivência de internos de enfermagem frente a assistência em saúde prestada para uma paciente com deficiência auditiva.

Com isso, o presente estudo objetivou relatar, numa perspectiva reflexiva, a experiência vivenciada por internos de enfermagem no seu processo prático de formação na assistência de enfermagem a uma paciente surda hospitalizada.

 

MÉTODOS

Tratou-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, do tipo relato de experiência. Esse método de estudo compartilha uma vivência prática a fim de contribuir para outras situações semelhantes. O relato de experiência é um método de estudo voltado para descrição de observação sistemática da realidade, sem o objetivo de testar hipóteses(9). Esse método de estudo busca estabelecer ainda as relações entre os achados dessa realidade e bases teóricas pertinentes, permitindo que o autor tenha autonomia para aprofundar as suas reflexões vivenciadas e ou observadas(9).

O presente relato de experiência foi vivenciado por acadêmicos de enfermagem durante o internato hospitalar do curso de enfermagem de uma Universidade Federal do Estado do Ceará-Brasil, no ano de 2018. O estágio ocorreu em um hospital de referência em cuidados intensivos cardiopulmonares do mesmo Estado mencionado. A disciplina de Libras foi ministrada paralelamente à disciplina de Internato Hospitalar, viabilizando a execução de conhecimentos adquiridos nessa formação teórica.

O presente estudo trata de um relato acerca da assistência em saúde, com foco na assistência de enfermagem, prestada para uma paciente surda hospitalizada admitida em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Com relação a composição da equipe multiprofissional envolvida nessa assistência em saúde, inclui-se os internos de enfermagem, de medicina, de psicologia e de nutrição, dois enfermeiros assistenciais, um médico cardiologista, um médico especialista em UTI e sete técnicos de enfermagem efetivos da instituição.

Após a apresentação de todos os internos de enfermagem aos profissionais da unidade na qual eles ficaram, os professores preceptores da universidade deixaram a unidade de saúde, não acompanhando a formação do aluno presencialmente em todos os horários de internato, tendo em vista que no Internato Hospitalar dessa instituição os discentes devem permanecer sozinhos na unidade, sendo supervisionados pelos enfermeiros assistenciais do dia. Os professores preceptores comparecem esporadicamente ao longo dos dias para colher feedbacks dos profissionais sobre os discentes e dos próprios discentes sobre a sua experiência prática no campo de estágio, com fins de acompanhar o processo formativo prático do graduando e de subsidiá-los no que for preciso. Dessa forma, os discentes passaram a compor a equipe de saúde local, tendo autonomia na sistematização do cuidado e na assistência de enfermagem sob supervisão dos demais profissionais.

As atividades solicitadas pelos professores preceptores a esses discentes foram a entrega de um relatório de campo e um relato de experiência de cunho reflexivo acerca da assistência de enfermagem prestada a um paciente. Dessa forma, por considerar a carência de estudos que descrevam a experiência de estudantes e profissionais da enfermagem no atendimento ao paciente surdo, os estagiários optaram por descrever a experiência do seu processo prático formativo na perspectiva da assistência de enfermagem à paciente surda hospitalizada na unidade.

A paciente encontrava-se no início da terceira idade (50 anos) e consciente ao ser admitida. Contudo, apresentava um quadro clínico de saúde agravado por complicações decorrentes de um determinado diagnóstico médico. Dias depois, a paciente foi intubada. Não se sabe o seu prognóstico final, tendo em vista que o estágio dos discentes envolvidos encerrou antes dessa paciente ter um desfecho de saúde.

Para a realização, implementação e avaliação do Processo de Enfermagem da paciente, realizou-se o acompanhamento da paciente durante as práticas do estágio supervisionado, totalizando dez encontros. O processo de enfermagem incluiu as suas cinco etapas: Histórico de Enfermagem, Diagnóstico de Enfermagem, Planejamento de Enfermagem, Intervenções de Enfermagem e Avaliação de Enfermagem(10).

 Os dados prévios da paciente foram colhidos na sua admissão por meio do seu prontuário e de uma anamnese (entrevista e exame físico) norteada por um instrumento de levantamento de dados da unidade (primeira etapa do processo). Utilizou-se as seguintes taxonomias de enfermagem para a prescrição e implementação do Processo de Enfermagem: a NANDA-I, para elencar os diagnósticos de enfermagem da paciente; a Classificação das Intervenções de Enfermagem, para prescrever as intervenções de enfermagem capazes de atender as demandas da paciente; e a Classificação dos Resultados de Enfermagem, para descrever os resultados esperados para aquela paciente frente as suas respostas.

Por se tratar de um relato de experiência, e não de um estudo de caso, as informações a respeito do seu quadro clínico não serão descritas e discutidas no presente artigo científico. As informações e dados obtidos durante a assistência foram utilizadas apenas para fins da sistematização do cuidado, por isso somente as informações fundamentais foram descritas para aprofundar as reflexões e discussões do presente estudo.

O sigilo e a confidencialidade dos dados clínicos foram mantidos. Ressalta-se ainda que foram respeitados os princípios éticos da pesquisa científica que expressa preocupação com a dimensão ética, assegurando o caráter confidencial e ausência de prejuízo, físico, financeiro ou emocional para os pesquisadores e participantes.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao admitirem a paciente na UTI, os estagiários de enfermagem se depararam com dois grandes desafios: implementar os conhecimentos técnicos-teóricos baseados em evidência científica apreendidos durante a graduação; e prestar assistência de alta complexidade a uma paciente surda. Para os internos, ambos os desafios foram veementemente importantes para a consolidação de conhecimento e a aquisição de mais maturidade de julgamento clínico e crítico. Contudo, ainda que o primeiro desafio elencado tenha sido importante para o ensino-aprendizagem, pode-se considerar que o mais complexo foi lançar mão de meios para estabelecer uma comunicação eficaz na assistência.

No que se refere ao primeiro desafio, de evocar os inúmeros conhecimentos teóricos e técnicos adquiridos ao longo da graduação e implementá-los, os discentes o superaram com êxito, baseado na autoavaliação, avaliação dos supervisores e preceptores. Todos os procedimentos técnicos e as habilidades que requeriam conhecimentos práticos e teóricos prévios foram devidamente avaliados, planejados e executados. A Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) também foi realizada adequadamente com a ajuda dos profissionais enfermeiros assistenciais da unidade. O comprometimento de todos os acadêmicos envolvidos foi essencial para que o Processo de Enfermagem fosse devidamente construído, prescrito e implementado.

A contribuição do internato hospitalar na UTI daquele hospital foi certamente de grande valia para os discentes. Graças as diretrizes curriculares do curso de graduação em enfermagem da referida instituição, os alunos puderam vivenciar esse momento prático tão rico, particularmente devido aos casos de alta complexidade acompanhados na unidade e o caso da paciente surda. Esse contato inicial, mais autônomo com a prática hospitalar, foi de fundamental importância para que os discentes pudessem se "enxergar" dentro da profissão e para que observassem as fragilidades do sistema de saúde e do ensino em enfermagem na graduação.

Tendo em vista que esses estágios devem ser realizados em hospitais gerais ou especializados, ambulatórios, rede de atenção básica e comunidades, os internos de enfermagem passam por uma série de revisões e treinamentos na academia antes desse primeiro contato. Isso é importante para que todos possam ir ao campo prático devidamente preparados. Contudo, em meio a esse processo formativo voltado para a assistência com foco nos procedimentos técnicos e revisões gerais de conhecimentos teóricos, muitas vezes algumas particularidades são esquecidas. Uma dessas particularidades é a assistência a pessoa com deficiência, dentre elas a pessoa surda.

O conceito de pessoa com deficiência é dinâmico, por isso já ultrapassou o modelo médico que compreendia a deficiência estritamente sob a perspectiva médica. Esse conceito alcançou, portanto, o sistema social, onde a deficiência passou a ser compreendida de forma plural e multifacetária(11). Nessa perspectiva, compreender a pessoa com deficiência nas suas múltiplas faces é de fundamental importância para que o graduando em enfermagem e o profissional enfermeiro possa prestar uma assistência de qualidade.

Abordar e refletir sobre esse conceito e o conteúdo voltado para essa temática ainda na graduação, bem como revisá-lo antes dos estágios em campos práticos, é fundamental, independentemente do campo de atuação, pois a pessoa com deficiência se encontra em todos os espaços de atuação do profissional enfermeiro. A paciente permaneceu consciente por alguns dias depois de ser admitida, e esses momentos foram de extrema relevância para que os internos de enfermagem pudessem refletir sobre a importância de um acolhimento terapêutico eficaz à pessoa com deficiência e de ter um conhecimento básico de Libras para estabelecer comunicação com pacientes surdos.

Nessa direção, a situação mais complexa vivenciada durante o estágio foi o levantamento de dados subjetivos diretamente com a paciente nos primeiros instantes em que ela deu entrada, pois nenhum dos estagiários sabiam se comunicar em Libras ou tinham vivenciado essa experiência. Embora eles tivessem lançado mão de mímicas e gestos para estabelecer uma comunicação simples e objetiva com a paciente, o fato de ela e de seus familiares também não conhecerem a língua de sinais comprometeu o estabelecimento de diálogos mais direcionados e efetivos. A maioria dos profissionais da unidade também não conseguiam se comunicar diretamente com a paciente, mesmo porque a paciente desenvolveu uma forma peculiar para dialogar com a sua família.

Ainda que a paciente soubesse Libras, os estudantes e os profissionais também não conseguiriam se comunicar por meio dessa língua de sinais. Diante desse desafio, os discentes se questionaram e levaram como pauta de discussão em sala de aula o seguinte questionamento: Quais problemas estruturais encontramos nesse cenário aonde sequer a pessoa com deficiência auditiva e os profissionais de saúde sabem a língua brasileira de sinais? Esse questionamento foi o tema de uma longa discussão, na qual os professores e alunos puderam dar a sua visão sobre o assunto. Contudo, para fins de esclarecimentos, com o auxílio da sua acompanhante esse levantamento de dados foi sendo realizado cuidadosamente.

A paciente não conhecer a língua de sinais do Brasil está apoiado no fato de que nem todas as crianças do Brasil tem acesso à educação, quanto mais ao ensino dessa língua. É de fundamental importância, segunda os estudiosos da área, que o acesso das crianças surdas à língua de sinais do seu país seja o mais precocemente possível garantido, pois as dificuldades da pessoa surda em adquirir a língua oral nos primeiros anos podem trazer consequências irreversíveis para o seu desenvolvimento mental, emocional e sua integração/reintegração social(12). A falta de acesso a essa língua, portanto, justifica a necessidade da pessoa surda criar juntamente dos seus familiares e seus pares uma maneira própria de se comunicar.

Para a paciente em questão e seus familiares, notadamente faltaram orientações e recomendações quanto ao acesso a língua de sinais brasileira por parte da sociedade, profissionais de assistência social e da saúde. A partir de diálogos com a acompanhante da paciente, os discentes puderam observar que houve uma série de falhas dentro do sistema de referência e contrareferência na sua região de saúde, o que dificultou o acesso da paciente à língua de sinais brasileira. Essa situação foi conversada com os demais profissionais de saúde da unidade, por isso, estima-se que esse acesso tenha sido garantido e ofertado após a recuperação da paciente.

Para estabelecer uma comunicação terapêutica com pacientes surdos, os profissionais e estudantes da saúde lançaram mão de uma linguagem não verbal formulada por ações e gestos, buscando compreender o paciente e ao mesmo tempo se fazer ser entendido, conforme outro estudo recomendou (13). Isso requereu dos internos de enfermagem muita atenção, paciência e tempo para o entendimento das queixas da paciente, e consequentemente para o atendimento e resolução das suas demandas.

As dificuldades existentes na comunicação entre profissionais da saúde e pacientes surdos vêm sendo reveladas e estudadas há anos. Dentre as barreiras de comunicação entre surdos e profissionais da saúde, tem-se as seguintes: dificuldade de compreensão no diálogo por uma das partes; não levantamento claro e objetivo de informações referentes à anamnese do paciente; dificuldade para explicar e realizar procedimentos; e desafios na interação com a equipe multiprofissional e administrativa (14).

Qualquer dificuldade e barreira de comunicação podem comprometer a segurança do paciente, tendo em vista que é preciso existir uma comunicação clara para que qualquer tratamento terapêutico possa ser prescrito e implementado (14). Os discentes puderam corroborar, a partir dessa vivência, a existência de cada uma dessas barreiras de comunicação mencionadas entre esses sujeitos.

Outro ponto que merece destaque e que ganhou notoriedade nas discussões em sala de aula sobre essa experiência versa sobre a disciplina de Libras. Embora a matriz curricular do bacharelado em enfermagem da instituição desses acadêmicos contenha a disciplina de Libras na lista das disciplinas optativas, são necessárias mais discussões sobre a possibilidade dessa disciplina ser obrigatória nos cursos de nível médio e superior da saúde. Essa carga horária é insuficiente para alcançar a fluência da língua, porém serve como um instrumento de sensibilização para que os futuros profissionais da área percebam a necessidade de buscar uma proficiência minimamente razoável em seu desempenho comunicativo com pessoas surdas.

A comunicação ineficaz entre os discentes, profissionais e paciente prejudicou o processo de análise de evolução constante do quadro clínico da paciente enquanto manteve-se consciente. Isso porque nenhum profissional da equipe de saúde da unidade tinha experiência com essa forma de abordagem linguística para prestar o cuidado humanizado, e por isso, algumas vezes ela deixou de participar diretamente da escolha de métodos alternativos terapêuticos. Isso não quer dizer que não houve esforço por parte da equipe e dos discentes para estabelecer uma comunicação terapêutica eficaz com a paciente. Os profissionais e discentes demonstraram preocupação com o caso e buscaram prestar uma assistência de qualidade.

Ademais, depois que a paciente foi intubada, alguns profissionais buscaram estabelecer canais de comunicação com a paciente enquanto realizavam as visitas e os procedimentos de rotina. Pacientes inconscientes, surdos ou não, necessitam de uma comunicação mais privilegiada. Para a aquela paciente, o método empregado pelos discentes e julgado como o mais significativo para o profissional demonstrar atenção e responsabilidade com o seu cuidado foi através do toque. A comunicação realizada com pacientes inconscientes por meio do toque tem respaldo científico (15).

A inquietação dos internos de enfermagem frente a essa vivência os estimulou a registrar essa experiência junto de seus professores com o objetivo de levar à comunidade científica e acadêmica reflexões que os convidam a rever as suas práticas e discussões no que concerne aos cuidados ofertados a pessoa surda hospitalizada. O presente estudo descreve, a partir de reflexões plausíveis, a observação sistemática de uma realidade que tem cada vez mais se tornado comum nas unidades hospitalares.

As limitações do estudo, portanto, encontram-se na impossibilidade de descrições detalhadas acerca do quadro clínica da paciente e de informações pessoais que certamente enriqueceriam as discussões, tendo em vista que o presente estudo se configura um relato de experiência reflexivo. Contudo, a experiência relatada e as reflexões incitadas poderão contribuir com a formação teórico-prático dos profissionais, professores e acadêmicos de enfermagem e da saúde. Além disso, esse relato incita reflexões importantes que podem encabeçar novos estudos no âmbito do ensino de Língua Brasileira de Sinais para pessoas surdas e profissionais da saúde, e do cuidado ofertado a esses pacientes com base em habilidades de comunicação gestual-visual para surdos e não surdos que não conhecem Libras.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo descreveu uma experiência de cunho reflexivo a partir da observação sistemática de uma realidade na qual os profissionais de saúde e internos de enfermagem encontraram barreiras para se comunicar com uma paciente surda hospitalizada. As dificuldades existentes na comunicação entre esses sujeitos foram especialmente a dificuldade de iniciar e manter um diálogo compreensível por ambas as partes e a não eficácia do levantamento claro e objetivo de informações subjetivas referentes à anamnese da paciente.

Foi possível corroborar que as barreiras de comunicação entre esses sujeitos possuem causas estruturais que precisam ser discutidas, como a não obrigatoriedade da disciplina de Libras nos cursos de ensino médio e superior na área da saúde. Embora os profissionais e discentes, bem como a própria paciente, não dispusessem de conhecimento em Libras para o estabelecimento de uma comunicação terapêutica eficaz, a equipe da unidade de saúde prestou mesmo nas suas limitações uma assistência de qualidade à paciente, pautada nos princípios éticos, morais e bioéticos.

Por fim, a experiência e reflexões descritas foram importantes para a aquisição e consolidação de conhecimentos técnicos-teóricos e o aprimoramento do julgamento clínico e crítico dos internos de enfermagem e de seus supervisores. As equipes de saúde também perceberam e reconheceram, a partir dessa vivência prática, que existe a necessidade dos profissionais dessa área aprenderem e desenvolverem habilidades de comunicação gestual-visual para uma assistência integral e acessível a todos os usuários do sistema de saúde.

 

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Submissão: 2022-03-10

Aprovado: 2022-04-25