CONHECIMENTOS E PRÁTICAS DESENVOLVIDAS POR ENFERMEIRAS NO CUIDADO DE ÚLCERAS DO PÉS DE PESSOAS DIABÉTICAS
KNOWLEDGE AND PRACTICES DEVELOPED BY NURSES IN THE CARE OF FOOT ULCER IN DIABETIC PEOPLE
CONOCIMIENTOS Y PRÁCTICAS DESARROLLADAS POR ENFERMEROS EN EL CUIDADO DE LA ÚLCERA DEL PIE EN PERSONAS DIABÉTICAS
1Nayara Silva Lima.
2Juliana Bezerra do Amaral
3Rose Ana Rios David
4Cícero Fidelis Lopes
5Fernanda Carneiro Mussi
6Raimeyre Marques Torres
7Fernanda Araujo Valle Matheus
8Milena Arão da Silva Oliveira
1Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7911-012X
2Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7465-0183
3Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1316-2394
4Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6112-2664
5Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0692-5912
6Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0190-8830
7Universidade Estadual de Feira de Santana. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7501-6187
8Universidade Federal da Bahia. Bahia, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3933-991X
Autor correspondente
Nayara Silva Lima
Av. Dr. Augusto Viana, S/N, Canela. Salvador - Bahia. CEP 40110-060.
Contato: +55(75) 98162-3443.
E-mail: slnayaraa@gmail.com
Submissão: 01-06-2023
Aprovado: 18-11-2023
RESUMO
Objetivo: Descrever o conhecimento e as práticas desenvolvidas por enfermeiras da atenção primária frente ao cuidado preventivo e curativo de úlceras em pés de pessoas diabéticas. Métodos: Trata-se de um estudo descritivo, realizado com 11 enfermeiras de um município do nordeste brasileiro. As entrevistas ocorreram em abril de 2022, guiadas por formulário semiestruturado. Para organização dos dados, foi seguido a análise de conteúdo temática. O estudo obedeceu aos aspectos éticos. Resultados: Emergiram quatro categorias: Conhecimento focado na úlcera em pé de pessoas diabéticas; compreendendo o risco para úlceras em pé de pessoas diabéticas; prática assistencial curativista da úlcera em pé de pessoas diabéticas; e, prática educativa permeada por dificuldades. Considerações Finais: O conhecimento das enfermeiras mostrou-se limitado e focado no acometimento da úlcera, sendo suas práticas pautadas na cura desta manifestação. Frente a isso, o estudo contribui para apontar a necessidade de ampliação do conhecimento e qualificação das práticas profissionais.
Palavras-chave: Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde; Enfermeiras e Enfermeiros; Cuidados de Enfermagem; Úlcera do Pé; Diabetes Mellitus.
ABSTRACT
Objective: To describe the knowledge and practices developed by primary care nurses regarding preventive and curative care for foot ulcers in diabetic people. Methods: This is a descriptive study, carried out with 11 nurses from a municipality in northeastern Brazil. The interviews took place in April 2022, guided by a semi-structured form. To organize the data, thematic content analysis was followed. The study complied with ethical aspects. Results: Four categories emerged: Knowledge focused on diabetic foot ulcers; understanding the risk for foot ulcers in people with diabetes; curative care practice for diabetic foot ulcers; and, educational practice permeated by difficulties. Final Considerations: The knowledge of the nurses was limited and focused on the involvement of the ulcer, and their practices were based on curing this manifestation. Faced with this, the study contributes to pointing out the need to expand knowledge and qualification of professional practices.
Keywords: Health Knowledge, Attitudes and Practice; Nurses and Nurses; Nursing Care; Foot Ulcer; Diabetes Mellitus.
RESUMEN
Objetivo: Describir los conocimientos y prácticas desarrollados por enfermeras de atención primaria en relación con el cuidado preventivo y curativo de las úlceras del pie en personas diabéticas. Métodos: Se trata de un estudio descriptivo, realizado con 11 enfermeros de un municipio del nordeste de Brasil. Las entrevistas se realizaron en abril de 2022, guiadas por un formulario semiestructurado. Para organizar los datos, se siguió el análisis de contenido temático. El estudio cumplió con los aspectos éticos. Resultados: Emergieron cuatro categorías: Conocimiento enfocado a las úlceras del pie diabético; comprender el riesgo de úlceras en los pies en personas con diabetes; práctica de cuidados curativos para las úlceras del pie diabético; y, la práctica educativa permeada por las dificultades. Consideraciones Finales: El conocimiento de los enfermeros fue limitado y enfocado en el envolvimiento de la úlcera, y sus prácticas se basaron en la cura de esa manifestación. Frente a esto, el estudio contribuye a señalar la necesidad de ampliar el conocimiento y la cualificación de las prácticas profesionales.
Palabras clave: Conocimientos, Actitudes y Prácticas en Salud; Enfermeros y Enfermeras; Cuidado de Enfermera; Úlcera del Pie; Diabetes Mellitus.
INTRODUÇÃO
De acordo com a Federação Internacional de Diabetes (1), nos Estados Unidos, compreendem cerca de 28 mil dólares a cada admissão por ulceração; na Suécia, 18 mil dólares em casos sem amputação e 34 mil dólares naqueles com amputação. Toscano (3), em um estudo epidemiológico aponta uma perspectiva de que no Brasil haja uma prevalência de 6,4% de pessoas com DM, totalizando 9,2 milhões de adultos. Estima-se que cerca de 829.724 teriam o risco de desenvolver o pé neuroisquêmico, dos quais 43.726 com úlceras. A maioria desses indivíduos seriam acompanhados em assistência ambulatorial (n = 42.983), e destes, metade teria uma úlcera infectada (n = 21.492), resultando em 11.284 de pessoas amputadas (3).
Quando se refere ao estado da Bahia, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, no período de 2010 à 2018, houveram mais de 6 mil amputações em decorrência de úlceras em pés de pessoas diabéticas (2). Neste mesmo ano, a SESAB observou que 25% das internações, de pessoas diabéticas na cidade de Salvador, foram consequências de complicações que poderiam ter sido prevenidos na Atenção Primária à Saúde (APS), porém, essas pessoas provavelmente não têm acompanhamento adequado, não promove o autocuidado e então busca os serviços hospitalares com o pé infectado que, possivelmente, será amputado.
Já em relação aos gastos públicos anuais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) para acompanhamento de pessoas que apresentam pé diabético, verifica-se o custo de cerca de R$600,44 para tratamento ambulatorial de pé diabético sem úlcera, aproximadamente R$ 712,95 para assistência de uma pessoa com úlcera não infectada, em média R$ 2.824,89 para o cuidado a um pé com úlcera infectada, e cerca de R$ 1.047,85 para assistência clínica a uma pessoa amputada. As despesas médicas anuais totalizam o valor estimado de R$ 586,1 milhões para todo o Brasil, sendo que, a maioria dos custos (85%) está destinado para a assistência de pessoas com pé neuroisquêmico ulcerado, cerca de R$ 498,4 milhões (3). A nível internacional essa realidade não é diferente como mostra estudo na Inglaterra que estima nos anos 2014 e 2014 o custo de 837 e 962 milhões de libras, respectivamente, sendo que 90% são usados para úlceras (4).
Ante a expressão da doença, seus impactos e custos, é extremamente importante a qualificação dos profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros, frente ao cuidado preventivo e curativo de úlceras em pés de pessoas diabéticas, sobretudo, no âmbito da APS. O Ministério da Saúde enfatiza que esses cuidados devem estar associados ao exame periódico dos pés e utilização de tratamentos para as alterações que forem identificadas através do exame (5). Para corroborar com a afirmativa sobre a necessidade de maiores conhecimentos e práticas desenvolvidas por enfermeiras no cuidado de úlceras dos pés de pessoas diabéticas, um estudo brasileiro realizado no município de Campina Grande com 105 enfermeiras(os) da APS identificou que 51,9% das(os) profissionais não conseguiram conceituar o pé diabético de maneira correta, mas, em contrapartida, 88,7% conheciam sobre a prevenção de ulcerações (6). Daí a importância desta pesquisa, que poderá contribuir para o aprofundamento do conhecimento acerca do cuidado a essas pessoas diabéticas, ao evidenciar as potencialidades e fragilidades das práticas adotadas por enfermeiras(os) atuantes na área.
Considerando que as enfermeiras assumem papel de destaque na Atenção Primária à Saúde, atuando como gestoras do cuidado, este estudo tem como objetivo: descrever o conhecimento e as práticas desenvolvidas por enfermeiras da APS frente ao cuidado preventivo e curativo de úlceras em pés de pessoas diabéticas. Acredita-se que este estudo, ao evidenciar as potencialidades e fragilidades do conhecimento e das práticas adotadas por enfermeiras atuantes na área, poderá contribuir para o aprofundamento da compreensão sobre o cuidado às pessoas diabéticas com risco para o desenvolvimento de úlceras em pé, ou até mesmo com a úlcera já instalada.
MÉTODO
Esta pesquisa corresponde a primeira fase da pesquisa ação intitulada: “Tecnologia Social para rastreamento de risco de úlceras em pés de pessoas diabéticas no contexto da atenção primária a saúde”. Ressalta-se que tal fase consiste em realizar o diagnóstico da realidade a ser pesquisada, do levantamento da situação e da identificação ou definição dos principais problemas.
O estudo ocorreu no âmbito de um Distrito Sanitário da cidade de Salvador, Bahia, Brasil, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, que atende a 35 bairros da capital baiana. O cenário foi escolhido por já possuir parceria com a Universidade Federal da Bahia e grupo de pesquisa a qual a pesquisadora integra, além disso, considerando o baixo nível socioeconômico e outras vulnerabilidades, o público atendido possui maior risco para o desenvolvimento de úlceras em pés devido o DM.
Dentre as 73 enfermeiras atuantes no distrito sanitário, 11 participaram das entrevistas. Cada enfermeira com tempo de atuação, na APS do município, maior que seis meses e com vínculo empregatício do tipo estatutário. Excluiu-se aquelas que estavam afastadas (os) das atividades laborais por férias, licença médica ou prêmio ou se recusaram participar do estudo.
A coleta de dados ocorreu no mês de abril de 2022, por meio da entrevista semiestruturada utilizando um roteiro contendo questões relacionadas à formação acadêmica e experiencias profissionais (grau de formação, tipo de instituição de ensino, tempo de conclusão do ensino superior, tempo de atuação em APS e Tempo de atuação na Unidade de Saúde da Família (USF)) e duas questões norteadora: qual o seu conhecimento e práticas preventivas e cuidadivas acerca das úlceras de pé de pessoas com diabetes mellitus? As entrevistas tiveram duração média de 50 minutos e foram realizadas em salas reservadas nos locais de atuação das profissionais.
O conteúdo das entrevistas foram audiogravadas por meio de um gravador portátil e transcritas com ajuda de um editor de textos. Após os dados foram sistematizados com base na análise de conteúdo temática categorial proposta por Bardin na qual orienta a organização do conteúdo da mensagem apreendida no texto, permitindo o surgimento de categorias. Assim, após a leitura flutuante, exploração do material e a categorização dos dados foi possível a organização do conteúdo. A viabilização desta etapa foi possibilitada pela utilização do software NVIVO10, que favoreceu a organização de dados qualitativos e a emersão das categorias temáticas. Após a consolidação dos resultados surgiram quatro categorias que foram analisadas à luz de dispositivos legais, políticas públicas e literatura atualizada no que se refere aos cuidados preventivos e curativos referente às úlceras em pés de pessoas diabéticas.
As participantes desse estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após terem sido esclarecidas sobre: objetivos do estudo, riscos e benefícios, direito de participar ou não da pesquisa, bem como a possibilidade de desistência a qualquer momento. O anonimato e confidencialidade das informações se deu por meio de codificações alfanumérica (ENF1 ENF2, ... ENF11) das falas. Desse modo, a pesquisa atendeu aos preceitos éticos contidos nas Resoluções nº 466/12 e nº 510/2016, ambas do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Vale destacar que este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia.
RESULTADOS
Quadro 1 - Caracterização das participantes da pesquisa quanto ao grau de formação, tipo de instituição, tempo de conclusão do ensino superior, tempo de atuação em APS e Tempo de atuação na ESF, Salvador - BA, 2022.
Nível de instrução acadêmica |
Tipo de instituição |
Tempo de conclusão do ensino superior |
Tempo de atuação na APS |
Tempo de atuação na ESF |
pós-graduação lato sensu (9) |
pública (6) |
20 anos (1) |
19 anos (1) |
19 anos (1) |
14 anos (3) |
8 anos (3) |
8 anos (3) |
||
13 anos (1) |
7 anos (2) |
|||
graduação (2) |
privada (5) |
12 anos (2) |
7 anos (5) |
5 anos (1) |
11 anos (2) |
4 anos (1) |
|||
10 anos (1) |
1 ano (2) |
1 ano (2) |
||
4 anos (1) |
15 dias (1) |
Fonte: Elaborado pela autora, 2022.
Conhecimento focado na úlcera em pé de pessoas diabéticas
As enfermeiras desvelaram um conhecimento parcial acerca do pé diabético, compreendendo sua existência atrelada à úlcera ou a mencionando em sua fala.
O paciente com pé diabético, que possui úlcera, apresenta como manifestações clínicas lesões nos dedos ou em outras partes do pé. Essas lesões são de difícil cicatrização por conta da baixa resposta ao tratamento convencional, levando a necrose ou infecção na região atingida (ENF 04)
Todo pé diabético é ulcerado e, portanto, precisam de cuidados para cicatrização. Isso pode estar relacionado à diabetes descompensada e principalmente pela falta de conhecimento do usuário (ENF 08).
A falta de sensibilidade protetora nos pés do paciente diabético, ainda que não esteja com uma úlcera, já pode ser considerado pé diabético, porque a neuropatia periférica é quem gera essa perda de sensibilidade (ENF 10)
Compreendendo o risco para úlceras em pé de pessoas diabéticas
As falas revelam que as enfermeiras da atenção primária conhecem os riscos para o desenvolvimento de úlceras em pé. Seus discursos versam principalmente sobre fatores modificáveis que envolvem o entendimento ou as ações dos pacientes em relação ao seu autocuidado.
O principal fator que leva o paciente a desenvolver úlcera em pé diabético diz respeito a descompensação do quadro metabólico em decorrência da diabetes que leva a uma perda de sensibilidade [...]. Além disso, a falta de adesão ao tratamento, a exemplo de dieta inadequada e uso irregular de medicações associado ao uso inapropriado de calçados especiais que leva a abertura das úlceras [...]. O quadro infeccioso inicia em decorrência, principalmente, da higiene inadequada dos dedos e pé e falta de tratamento das calosidades. (ENF 07)
A má alimentação desencadeia o aumento de glicose no sangue, levando o paciente que já possui diagnóstico de diabetes a um quadro descompensado [...]. Na maioria das vezes, esse fator está associado à falta de conhecimento do usuário que acaba não aderindo à dieta e ao tratamento de forma adequada [...]. Diante da ausência de cuidados com os pés, principalmente em relação a calçados e higiene, pode desencadear uma úlcera em pés de pessoas diabéticas (ENF 09)
Compreendo que pacientes portadores de glicemia descompensada, sem cuidados com os pés e sem conhecimento prévio possuem chance aumentada de desenvolver úlceras em pés (ENF 11).
Prática assistencial curativista da úlcera em pé de pessoas diabéticas
As enfermeiras trazem uma prática focada na resolução da lesão, quando essa já está instalada, que podem permear orientações para impedir o agravamento. Destaca-se que o cuidado, na fala das enfermeiras, não pode ocorrer para pessoas com pé diabético se não houver uma sala de curativos.
Eu faço o atendimento clínico dos pacientes com pé diabético uma vez por semana na sala de curativo [...] realizo anamnese, preenchimento do PEC [prontuário eletrônico do cidadão], registros fotográficos, mensuração da lesão, aplicação da Escala Bates Jensen e reavaliação da prescrição da cobertura adequada à ferida (ENF 02).
Na unidade em que trabalho realizamos cuidado dos pés com lesão na sala de curativos. Também fazemos orientações quanto ao cuidado com os pés, uso adequado de calçados, higienização adequada [...] importância da alimentação saudável, uso regular dos medicamentos e acompanhamento da glicemia capilar. (ENF 06)
Eu não cuido de pessoas com pé diabético pois na minha unidade não é realizado curativo devido estrutura física inadequada para tal procedimento. Além disso, não me sinto preparado para ajudar, por exemplo, na determinação de coberturas especiais considerando a avaliação do estado da ferida (ENF 05).
Eu acho que para além dos fatores de risco que ocorrem devido o diabetes descompensado, há como fator de risco a falta da rede de apoio para esse paciente, como por exemplo a família, eu enquanto enfermeira busco sempre trazer meu paciente pra perto, ouvir, saber como é a vida dele fora da unidade, ele precisa confiar em mim pra que eu possa cuidar dele, porque se o paciente não se sente protegido, ele vai embora (ENF 01).
Prática preventivas permeada por dificuldades
O discurso mostra nas narrativas das enfermeiras que estas referem dificuldades para realizar ações educativas. Essas atividades preventivas podem não ser realizadas por causa desses entraves e, em alguns casos, pode ser delegada a outros profissionais.
De nada adianta orientar uma alimentação saudável se o paciente, na maioria das vezes, não tem alimentos para sua sobrevivência, uma vez que teve que parar de trabalhar por conta da sua comorbidade [...]. Existe a necessidade de uma política pública para ajudar esses usuários com insumos para sua alimentação (ENF 01)
Acompanho casos de lesão em pé diabético na sala de curativos, lá realizo avaliação da lesão e desbridamento quando necessário, também oriento sobre tratamento medicamentoso e não medicamentoso da doença. Infelizmente, por conta do alto fluxo de pacientes e da complexidade dos casos, a gente não consegue prestar a assistência adequada (ENF 03)
A enfermagem na atenção primária é extremamente sobrecarregada, com alto fluxo de pacientes, além da complexidade e tamanho das lesões, o que dificulta uma atuação preventiva. Desse modo, fica por conta somente do médico a realização da consulta de HIPERDIA e da avaliação dos pés. [...] Tenho intenção de implementar uma consulta de enfermagem à parte para esse público, mas o comparecimento é baixo pois os pacientes sabem não vai haver prescrição de medicações (ENF 02)
DISCUSSÃO
O estudo desvelou que a maioria das enfermeiras possuem um conhecimento parcial acerca do pé diabético, uma vez que a definição vem sempre atrelada à úlcera. Segundo o International Working Group on the Diabetic Foot (IWGDF) pé diabético é uma complicação da diabetes que se revela com impactos macro e microvasculares podendo ou não progressivamente desenvolver a úlcera (7). O manual do Ministério da Saúde, apoiado no IWGDF, interpreta e aponta enquanto definição para pé diabético a presença de infecção, úlcera e/ou dano tecidual (5). Somado a isso, a maior probabilidade de a úlcera desencadear, em caso extremo, a amputação, pode ter colaborado com a compreensão da doença sempre envolver lesão. Entretanto, partindo de um conceito amplo, a presença de outros sintomas como perda de sensibilidade, claudicação intermitente e deformidades já caracterizam essa complicação do DM.
O conhecimento ampliado em relação ao pé diabético pode colaborar nas ações direcionadas à prevenção, o que por outro lado, ante a um conhecimento precário, pode ser elemento dificultador. No Piauí, estudo na atenção primária mostrou que as enfermeiras se autoavaliam com conhecimento satisfatório acerca do pé diabético, entretanto após avaliação por testes, 45,6% apresentaram conhecimento insatisfatório e 54,4% conflitantes (8). Corroborando, estudo na Paraíba, mostrou deficiência no conhecimento de enfermeiras durante respostas em um pré-teste, destaca-se, entretanto, que o melhor nível de conhecimento foi registrado na pergunta relacionada à úlcera em pé diabético (6). Por outro lado, no Paquistão, pesquisa com enfermeiras revelou que apenas 54% compreendiam adequadamente o que era e como tratar úlceras em pé (9). Nesse sentido, conjectura-se que o baixo entendimento sobre pé diabético pode representar o desconhecimento de manuais, protocolos e diretrizes, o que pode reverberar em um cuidado precário no que tange a prevenção de lesões e, consequentemente, desenvolvimento da úlcera.
Atrelado a este conhecimento focado na ulceração, a partir das falas das participantes foi possível desvelar que estas reconhecem os fatores de risco para o desenvolvimento de feridas em pés de pessoas com diabetes. Essa necessidade de constante investigação dos riscos para o desenvolvimento das úlceras é uma das diretrizes principais para o cuidado com o pé diabético e deve ser incorporada na rotina de práticas diárias da equipe de enfermagem (10). Dessa forma, busca-se identificar os riscos e intervir nos mesmos, de forma a evitar complicações.
Nesse ínterim dos fatores de riscos, as enfermeiras apontaram para o baixo conhecimento das pessoas diabéticas, quando se refere ao autocuidado, situação que favorece a falta de cuidado com os pés. Nesse sentido, a associação entre o não cuidado, o tipo de corte da unha, a ausência ou menor frequência de autoexame e a não hidratação são fatores associados ao risco de pé diabético (11). Essa é uma realidade dos pacientes com diabetes, conforme mostra estudo em São Paulo que dos 42 pacientes investigados, 4,8% cortavam as unhas de forma arredondada, 7,2% não possuíam conhecimento sobre a hidratação dos pés, 9,5% usavam meias inadequadas, 14,3% retiravam a cutícula e 16,7% faziam uso de sandálias (12).
Acrescenta-se que o cuidado com os pés está em três dos cinco pilares elencados pelo IWGDF para prevenção da úlcera, sendo eles: sendo eles: identificar e inspecionar o pé em risco e o uso adequado de calçados, tratar fatores de risco, no qual inclui as calosidades (7). Destaca-se, desse modo, que conhecer essas ações para a prevenção de úlceras em pés de pessoas diabéticas, pode representar um facilitador na abordagem das enfermeiras para que em sua prática sejam adotadas medidas voltadas à informar aos pacientes quanto ao cuidado dos pés.
Ainda nesse sentido, a falta de adesão ao tratamento, como dieta e medicação inadequadas foram apontadas pelas enfermeiras como fatores que se apresentam como risco para alteração dos níveis glicêmicos e consequente aparecimento de úlceras. Estudo em Minas Gerais encontrou associação com significância estatística entre dieta e controle glicêmico, além de mais da metade dos pacientes ter deixado de tomar seus medicamentos alguma vez alegando que haviam se sentido melhor, ou pior ou ainda pelo término do medicamento (13). A compreensão desses fatores pode prevenir complicações mais graves como as amputações que possuem elevada prevalência, como revela pesquisa na Turquia que dos 400 pacientes com úlceras, 35,75% necessitam de amputação, elevando as chances de precisar de nova amputação após a primeira ocorrência (14).
Considerando o exposto, vale salientar o potencial redutor de riscos atrelado ao estabelecimento de vínculo entre profissional e paciente. O vínculo é construído a partir da demonstração de conhecimento, comunicação efetiva e respeito mútuo, sendo de grande importância para a efetivação das ações no âmbito da Atenção Básica (15). A assertiva é corroborada a partir de relatos de enfermeiros, contidos em pesquisa realizada no Irã, os quais afirmam perceber maior possibilidade de cuidado de indivíduos com úlceras em pé a partir do estabelecimento da confiança do paciente no profissional (16).
Um dos elementos que é constituído a partir da ligação entre paciente e profissional é a inclusão familiar na terapêutica de cuidado. Este envolvimento familiar foi visto por enfermeiros, participantes de pesquisa realizada no interior de São Paulo, como potencializador da melhora na evolução da doença, visto que permite preparar os familiares para o cuidado em casa e oportuniza educar em saúde (17). Desse modo, pode-se afirmar que a inclusão familiar, facilitada pelo vínculo do indivíduo com o enfermeiro, acarreta benefícios no manejo do agravo.
Corroborando com o explicitado, as enfermeiras participantes deste estudo destacam a falta de vínculo como um risco para o surgimento de úlceras em pés. Estudo realizado nos Estados Unidos, com sujeitos portadores de diabetes, sugere que pode haver diminuição da morbidade relacionada a úlceras em pé a partir do acompanhamento regular dos pacientes e do compartilhar de educação em saúde focada para os mesmos (18), o que é alcançado a partir do estabelecimento do vínculo. Assim, quando não há, pode haver aumento nesta morbidade e consequente desenvolvimento ou piora da úlcera em pé.
Entretanto, vale salientar que apesar de reconhecer corretamente alguns dos possíveis riscos para ulceração em pé diabético, as profissionais que participaram deste estudo não relataram adotar práticas sobre os pródromos para a mesma. Tal conjuntura permite a afirmação de que estas não atuam de maneira preventiva frente às possibilidades de agravamento do pé diabético. Segundo o IWGDF existem medidas que podem ser adotadas para prevenção, principalmente, da úlcera em pé, estas perpassam desde a educação e instrução do paciente e família até aos cuidados integrais com o paciente, com enfoque nos pés (7).
Mesmo em face de tais recomendações, a partir dos resultados deste estudo apreende-se que as práticas adotadas pelas profissionais, em sua maioria, são de caráter curativista, focado no modelo biomédico hegemônico. Este é norteado por um pensamento reducionista e fragmentado, regendo a adoção de práticas intervencionistas e altamente especializadas sem levar em consideração o âmbito sócio-cultural do indivíduo (19). Revela-se, portanto, que o conhecimento que as profissionais demonstram, focado na úlcera em pé, rege a escolha das práticas.
Uma destas, emergida neste estudo, diz respeito a realização de atendimento clínico com aplicação de escalas, como a Bates-Jensen Wound Assessment Tool (BWAT), e seguimento de protocolos instituídos. A BWAT objetiva a avaliação da evolução da ferida em pé, onde scores mais baixos indicam melhor cicatrização, sendo a mesma amplamente utilizada para este fim (20). Sobre o seguimento de protocolos, estudo revela, mediante relato de enfermeiros, que implementar diretrizes pré-determinadas tem efeito benéfico no tratamento, com constatada redução de complicações em pacientes com pé diabético (21). Outrossim, sabendo que o cuidado em saúde pode ser baseado em tecnologias leves, leve-duras e duras, tem-se desenvolvido instrumentos, como aplicativos, que auxiliem na adoção de práticas baseada em evidências (22).
Além das práticas acima relatadas, a maioria das participantes do estudo concentram suas ações na sala de curativos. Nesta, segundo as mesmas, são realizados curativos e as prescrições das coberturas, embora algumas ainda tenham dificuldade em escolher o melhor tratamento para o paciente. As medidas de intervenção reconhecidas internacionalmente como padrão ouro para o tratamento da úlcera em pé envolvem, alívio da pressão, desbridamento, controle da infecção, revascularização, quando indicada, curativos especiais, terapia com oxigênio hiperbárico sistêmico e por pressão (23). Embora a possibilidade de cuidado seja ampla, o foco para a enfermagem tem se dado pelo curativo, sendo esta atribuição da profissão.
Enquanto ação inerente ao cuidado de enfermagem, as ações educativas foram mencionadas pelas enfermeiras deste estudo, contudo, foram direcionadas às pessoas que já possuem a úlcera instalada. Ainda que a enfermeira seja capaz de avaliar e identificar o risco, percebe-se uma carência no que diz respeito às ações preventivas que antecedem à ulceração. Destaca-se que as ações de promoção à saúde têm potencial para auxiliar na adesão ao tratamento e, em decorrência, diminuir as complicações (24), contudo sua ausência pode estar aumentando a demanda do serviço.
A despeito disso, as enfermeiras reportam sobrecarga de atividades e o alto fluxo de pacientes enquanto dificuldades para realização das ações educativas. Se soma a esse cenário de multitarefas, a complexidade dos casos de pessoas com úlcera em pé diabético, o que requer maior investimento de cuidados e de orientações. Sobretudo na Atenção primária à saúde, a demanda com atividades burocráticas tende a comprometer o tempo que poderia ser voltado às ações preventivas, não sendo incomum que profissionais da saúde se queixam desse elemento como dificultador (25). Além disso, pacientes da atenção primária na Holanda também reportaram que participar de uma consulta sem pressão do tempo flui melhor e os estimula a participar e tirar suas dúvidas sobre a diabetes (26). Deste modo, há necessidade de reorganização do fluxo de trabalho para garantir que as ações de prevenção sejam privilegiadas no âmbito da atenção primária.
Frente a todos os desafios supracitados alia-se ainda a desvalorização da consulta de enfermagem por parte dos pacientes, visto que esperam prescrição de um tratamento medicamentoso, função atribuída ao médico. Essa expectativa pode relacionar-se à compreensão de saúde limitada, enquanto ausência de doenças, e regida pelo modelo médico curativista. Pesquisa narrativa realizada com usuárias de uma unidade de Estratégia de Saúde da família revelou que a maioria das entrevistadas significa saúde enquanto ausência de doenças, sendo a mesma atestada a partir de instrumentais médicos-tecnológicos (27). Tal percepção pode guardar relação com a construção social de valorização do saber médico em detrimento às demais práticas em saúde.
Além da compreensão associada às questões culturais, um fator que pode contribuir com o baixo entendimento é o nível socioeconômico dos pacientes. No Irã, pesquisadores encontraram associação significativa entre níveis socioeconômicos e déficit de conhecimento acerca da diabetes e da prática de autocuidado (28). Estudo no México trouxe que a baixa escolaridade e menor estrato econômico influenciam negativamente no autocuidado para diabetes, além disso, fazer parte de família indigena esteve associado a maiores chances em não ter a consulta pautada nas cinco ações básicas propostas pelo IWGDF (29). Deste modo, o nível socioeconômico pode refletir no baixo conhecimento e, por sua vez, na ineficiência das práticas de autocuidado.
Diante do exposto, o conhecimento das enfermeiras e suas práticas ainda carecem de ações que ampliem o entendimento das profissionais que estão na atenção primária, a fim de que suas ações pensem no indivíduo de forma integral e considerem outras manifestações do pé diabético. Embora sua prática seja realizada com responsabilidade, se faz necessário maior investimento em ações preventivas, estímulo aos pacientes, fortalecimento de vínculo e inclusão familiar para maior adesão à terapêutica. Além disso, a implementação de políticas reparadoras, como trazido pelas participantes desse estudo, poderá auxiliar na redução de complicações da diabetes, ao disponibilizar o acesso a dispositivos sociais que auxiliem no manejo da sua condição crônica de saúde.
Em que pese as dificuldades reportadas pelas enfermeiras quanto ao alto fluxo de trabalho, se faz necessário que este seja repensado. Nesse sentido, pesquisa na Austrália que buscou distribuir proporcionalmente o número de pacientes à quantidade de profissionais mostrou diminuição nos índices de mortalidade, reinternação e tempo de permanência (30). Nesse sentido, o remanejamento das trabalhadoras de saúde quanto às suas demandas poderá contribuir em um melhor atendimento aos pacientes com pé diabético e/ou risco para úlcera em pé.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos resultados desse estudo é possível constatar que as enfermeiras possuem conhecimento limitado acerca do pé diabético, estando este focado na úlcera, o que permite maior compreensão dos riscos para essa lesão. Os resultados também expressam um déficit importante de conhecimento e a ausência de práticas de rastreio de úlcera em pé diabético, expressam a falta de vínculo das enfermeiras com os usuários, revelam des(cuidado) ainda que as enfermeiras tentam justificar os limites para o trabalho em campo clínico. Deste modo, atuam com foco curativista para tratar a ferida em pé diabético com pontuais ações preventivas, permeadas por dificuldades, com fins ao não agravamento do quadro já instalado.
No que se refere às limitações do estudo, a impossibilidade de participação da pesquisa, por algumas enfermeiras atuantes no referido distrito sanitário, foi considerada a principal. O dimensionamento de pessoal do DSSF, no período da realização da pesquisa, estava comprometido por vários motivos, desfalques, férias, exonerações, licenças médicas, licenças prêmios, relotações. No período da coleta de dados, o referido distrito estava em fase de vacinação contra a Covid-19, e por estarem à frente dessa demanda, algumas enfermeiras não puderam participar da pesquisa.
A pesquisa busca potencial generalização e aponta para necessidade de materiais que contribuam com a ampliação do conhecimento acerca do pé diabético e risco para úlcera e norteiem as ações preventivas para não acometimento de úlcera em pé de pessoas com diabetes.
REFERÊNCIAS
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Contribuição dos autores
Nayara Silva Lima. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; Redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada.
Juliana Bezerra do Amaral. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
Rose Ana Rios David. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
Cícero Fidelis Lopes. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; Redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada.
Fernanda Carneiro Mussi. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
Raimeyre Marques Torres. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
Fernanda Araujo Valle Matheus. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
Milena Arão da Silva Oliveira. Contribuiu na análise e interpretação dos dados; Redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada.