1Vera Lúcia Duarte da Costa Mendes
1Instituto Estadual de Hematologia e Hemoterapia – HEMORIO. Orcid: 0000-0002-3322-4073
O Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti – HEMORIO, é o Hemocentro coordenador do Estado do RJ responsável pelo abastecimento de sangue de cerca de 180 unidades de saúde pública conveniadas ao SUS, e pelo tratamento hematológico em nível primário à terciário de baixa a alta complexidade. A Instituição oferece uma formação diferenciada que qualifica profissionais para um olhar especializado sobre a produção de novos conhecimentos quanto ao processo saúde-doença, com atenção integral à saúde, nas respectivas áreas de atuação.
Os Programas de Residências Multiprofissionais em Saúde foram estabelecidos no ano de 2005, por meio da Lei Federal nº 11.129/2005, como um reflexo do importante movimento dos Ministérios da Saúde e Educação e do Conselho Nacional de Saúde para a formação de recursos humanos na área da Saúde. Desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), muitos têm sido os desafios. A integralidade do cuidado e o acesso universal são os princípios importantes, e nesse sentido, equipes de saúde têm sido formadas por diversos núcleos profissionais da saúde, visando o trabalho em equipe multiprofissional na perspectiva da interprofissionalidade e das práticas colaborativas (1).
A residência multiprofissional é uma modalidade de pós-graduação lato sensu definida como um programa de cooperação intersetorial que visa a inserção de jovens profissionais em áreas prioritárias do SUS. É desenvolvida em regime de dedicação exclusiva sob supervisão docente-assistencial e financiada pelo Ministério da Saúde. O programa de residência multiprofissional teve início, no Hemorio, no ano de 2017, incluindo as áreas de Biologia, Biomedicina, Enfermagem e Assistente Social. Em 2020, a Odontologia foi incluída no programa, sendo contemplada com 3 residentes com a missão de prestar atendimento odontológico de qualidade, integrado e multidisciplinar em saúde, com foco nos portadores de doenças hematológicas e onco hematológicas. O período da residência é de 2 anos e ao final eles deverão apresentar um trabalho de conclusão de residência.
A respeito do cirurgião dentista, cumpre assinalar que esse profissional, de acordo com o autor (2), tem a prerrogativa de atuar no hospital como consultor de saúde e como prestador de serviços, e, diante das alterações bucais que podem expor o paciente a um maior risco de infecção, existe a necessidade permanente de acompanhamento. Afinal, os cuidados odontológicos prestados a pacientes internados auxiliam na prevenção de infecções hospitalares relacionadas, sobretudo, ao sistema estomatognático, os quais interferem na recuperação dos mesmos, prolongando a internação e exigindo mais medicamentos e cuidados, além de ser fator causal de um número significativo de óbitos (3).
O ingresso no programa de residência multiprofissional em Hematologia e Hemoterapia se deu por meio de processo seletivo. A coordenação da residência multiprofissional é a responsável pela articulação da residência da instituição formadora. Sob a responsabilidade da coordenação está a organização, supervisão, avaliação e acompanhamento de todos os programas de residência multiprofissional.
O corpo docente é constituído por orientadores do serviço, preceptores, professores convidados e orientadores de conclusão do programa de residência. As atividades de formação em serviço são desenvolvidas diariamente durante todo o período da residência (24 meses), junto às equipes de saúde nas quais os residentes estão lotados e nos demais campos de estágios previstos pelo programa.
A grade curricular é composta por: eixo transversal - os residentes das diversas áreas têm uma formação teórica abordando temáticas relativas à metodologia de pesquisa, políticas públicas em saúde, gestão em saúde, fundamentos em Hematologia e Hemoterapia, abordagem multiprofissional ao paciente hematológico, bioética, manejo de situações vivenciadas na clínica pelos profissionais nos diferentes campos de inserção; eixo específico- planejar e prestar assistência odontológica ao paciente hematológico e onco hematológico com abordagens nas áreas de cirurgia oral, dentística, periodontia, estomatologia, odontologia hospitalar e odontologia intensiva.
O ano de 2020 foi desafiador. Em março foi deflagrada a pandemia da Covid -19 e a partir daí muitas incertezas e medos nos acompanharam. A odontologia teve que redobrar o cuidado com a paramentação e o manejo no atendimento odontológico, visto que a cavidade bucal, era uma área de potencial transmissibilidade da doença. Esse contexto sanitário fomentou, inicialmente, o despertar de sentimentos frente a esta nova situação jamais vivenciada na história recente. Medo, insegurança e incertezas começaram a fazer parte do cotidiano, à medida que chegavam informações e protocolos a serem seguidos, sob orientação das esferas federal, estadual e municipal. Sentimentos estes que, para cirurgiões-dentistas, se materializaram em afetos anteriormente nunca sentidos, corroborando com experiências relatadas por outros autores (4).
Naquele momento foi suspenso o atendimento de rotina aos pacientes ambulatoriais, sendo realizado apenas o atendimento de urgências e emergências, visto que o potencial de infecção na saliva ainda era desconhecido, além da formação exuberante de aerossóis provenientes da realização dos procedimentos (5). Demos ênfase nas atividades científicas com apresentação de seminários pelas residentes, aulas teóricas ministradas pelos preceptores, e profissionais de outras áreas do hospital. Foram momentos difíceis que exigiram de todo o corpo clínico um alto grau de resiliência frente a nova realidade. O tempo foi passando, a comunidade científica internacional se mobilizou intensamente e finalmente chegou a vacina que salvou milhares de pessoas da morte.
A Odontologia foi voltando ao seu funcionamento integral e o programa de residência multiprofissional avançou em sua integralidade. Em março de 2021, o instituto recebeu três residentes e nesse ano entraram outros três, totalizando 9 residentes, com turmas do primeiro (R1) e do segundo ano (R2). A rotina de atendimento se divide entre o atendimento ambulatorial e atendimento aos pacientes internados incluindo visita regular aos leitos, laserterapia aos pacientes em quimioterapia e recentemente começamos a fazer acompanhamento aos pacientes que realizam transplante, visto que nesse ano, o Hemorio voltou a fazer transplante autólogo de medula óssea. Paralelo ao atendimento, as atividades do eixo transversal voltaram em sua totalidade, integrando os residentes das diversas áreas de atuação.
Mensalmente é realizado um programa de atividades incluindo aulas, apresentação de seminários e apresentação de caso clínico multiprofissional. Nessa atividade todas as modalidades têm a oportunidade de trocarem entre si seus saberes e elaborarem uma apresentação de um caso clínico de um paciente internado no Hemorio, fazendo com que o conceito de interdisciplinaridade seja trabalhado na sua íntegra.
No ambiente hospitalar, o paciente internado deve ser monitorado e os cirurgiões-dentistas têm o papel fundamental na avaliação da saúde oral, reforçando a ideia de que estas avaliações são essenciais para os cuidados da saúde geral e no atendimento do paciente como um todo, pois diversas manifestações na cavidade oral podem surgir a partir das condições sistêmicas como doenças respiratórias, diabetes e uso de medicamentos como bisfosfonato (associado à osteonecrose da mandíbula), por outro lado as enfermidades sistêmicas também podem surgir a partir das condições orais, como por exemplo na doença periodontal, devido à grande variedade de espécies bacterianas presentes no biofilme (6).
Má higiene bucal em pacientes críticos é fator crucial para o desenvolvimento acelerado de periodontites, gengivites, otites, rinofaringite crônicas, xerostomia potencializando focos de infecções. Neste sentido, vale mencionar as afecções do trato respiratório, fortemente associadas a doença periodontal, em especial a pneumonia bacteriana e a doença pulmonar obstrutiva crônica5 aumentando o tempo de internação dos pacientes em 6,8 até 30 dias (7).
A promoção da saúde bucal em ambiente hospitalar proporciona conhecimento, motiva os pacientes e seus acompanhantes na aquisição de bons hábitos, visa a assistência integral e mais humanizada do paciente hospitalizado. Essas ações são plausíveis na introdução da higiene bucal dos pacientes à rotina hospitalar, reduzindo o biofilme dentário e, consequentemente, o risco de infecções provenientes da microbiota bucal (8).
Apesar de ter avançado bastante, a odontologia precisa implementar de maneira abrangente a disciplina de Odontologia Hospitalar na grade curricular dos cursos de graduação, para que assim, aspectos relacionados à atenção hospitalar e à saúde bucal sejam discutidos, refletidos, vivenciados, visando ao desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes. Só assim o cirurgião dentista irá romper com a cultura histórica em relação à forma isolada e fragmentada de atuar e tornar-se sujeito corresponsável pela saúde integral do indivíduo hospitalizado (9).
Os desafios são muitos, o caminho se faz caminhando, mas a residência multiprofissional tende a concretizar uma abordagem global do paciente, por meio da qual o mesmo é visto com um todo, em seus aspectos biopsicossociais, promovendo um movimento de constante reflexão sobre a produção de saúde. Trata-se de uma construção diária complexa, mas que representa um enorme ganho para os pacientes e para a odontologia como um todo.
3 Peres RS, Anjos ACY, Rocha MA, Guimarães AGC, Borges GM, Souza KG et.al. O trabalho em equipe no contexto hospitalar: Reflexões a partir da experiência de um programa de residência multiprofissional em saúde. Em Extensão [Internet]. jan/jun. 2011[citado 2022 Jul. 20]; 10(1):113-20. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/revextensao/article/view/20760.
4 Santos JSX, Silva AS, de Carvalho LA, Soares JO, Lopes SPA, Moreira MBA. A atuação do cirurgião-dentista, vinculado a um programa de residência multirpofissional em saúde, no combate à Covid-19 na Atenção Primária à Saúde: relato de experiência. J. Manag. Prim. Health Care [Internet]. 2020[citado 2022 Jul. 20];12:e24. Disponível em: https://www.jmphc.com.br/jmphc/article/view/993/897
5 Franco JB, de Camargo AR, Peres MPSM. Cuidados Odontológicos na era da Covid-19: recomendações para procedimentos odontológicos e profissionais. Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent [Internet]. 2020[citado 2022 Jul. 20];74(1):18-21. Disponível em: https://site.crosp.org.br/uploads/arquivo/8b9e5bd8d0d5fd9cf5f79f81e6cb0e56.pdf
6 Aranega AM, Bassi APF, Ponzoni D, Wayama MT, Esteves JC, Garcia Junior IR. Qual a importância da Odontologia Hospitalar? Rev. Bras. Odontol [Internet]. jan/julho. 2012[citado 2022 Jul. 20];69(1):90-3. Disponível em: http://revodonto.bvsalud.org/pdf/rbo/v69n1/a20v69n1.pdf
7 Saldanha KDF, Costa DC, Peres PI, Oliveira MM, Masocatto DC, Gaetti Jardim EC. A Odontologia Hospitalar: revisão. Arch Health Invest [Internet]. 2015[citado 2022 Jul. 20];4(1):58-68. Disponível em: https://www.archhealthinvestigation.com.br/ArcHI/article/view/881/7121
8 Euzébio LF,Viana KA, Cortines AAO, Costa LR. Atuação do Residente Cirurgião Dentista em Equipe Multiprofissional de Atenção Hospitalar à Saúde Materno-Infantil. Rev. Odontol. Bras. Central [Internet]. 2013[citado 2022 Jul. 20];21(60). Disponível em: https://www.robrac.org.br/seer/index.php/ROBRAC/article/view/739/670