ARTIGO ORIGINAL

 

ORDEM DO DISCURSO SOBRE A JORNADA DE TRABALHO NA ENFERMAGEM: UM OLHAR FOUCAULTIANO

 

ORDER OF THE DISCOURSE ON THE WORKDAY IN NURSING: A FOUCAULTIAN PERSPECTIVE

 

ORDEN DEL DISCURSO SOBRE LA JORNADA DE TRABAJO EN ENFERMERÍA: UNA PERSPECTIVA FOUCAULTIANA


 

https://doi.org/10.31011/reaid-2023-v.97-n.2-art.1476 

1Urbanir Santana Rodrigues

2Eder Pereira Rodrigues

3Herbert Toledo Martins

 

1Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Santo Antônio de Jesus, Bahia, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0614-9183

 

2Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Santo Antônio de Jesus, Bahia, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5972-2871

 

3Universidade Federal do Sul da Bahia, Teixeira de Freitas, Bahia, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4096-6104

 

Autor correspondente

Urbanir Santana Rodrigues

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Ciências da Saúde, Avenida Carlos Amaral, 1015, Santo Antônio de Jesus -Bahia, Brasil. 44574-490. E-mail: urbanir@gmail.com

 

Submissão: 09-08-2022
Aprovado:
17-04-2023

 

RESUMO

Objetivo: analisar a ordem discursiva proferida pelos Conselhos Regionais de Enfermagem da região nordeste quando instados a se manifestar sobre a jornada de trabalho no campo da enfermagem. Método: pesquisa qualitativa, documental, suporte teórico a ordem do discurso de Michael Foucault. Resultados: revelou falta consenso nas orientações dos Pareceres Técnicos relacionados ao tema jornada de trabalho, a falta de laços de solidariedade da categoria e tensão entre a hipossuficiência da trabalhadora diante a da mera liberalidade por decidir a sua jornada laboral. Conclusão: Os regimes de verdade produzidos nos Pareceres Técnicos remetem à reflexão sobre a necessidade de reconstrução da Enfermagem no sentido de participar efetivamente de um movimento político, social e ideológico para fortalecer a profissão.

Palavras-chave: Enfermagem; Jornada de Trabalho; Emprego.

 

ABSTRACT

Objective: to analyze the discursive order given by the Regional Councils of Nursing in the northeast region when asked to express their views on a working journey in the field of nursing. Method: qualitative, documentary research, theoretical support to Michael Foucault's order of discourse. Results: it revealed a lack of consensus in the guidelines of the Technical Opinions related to the theme of working journey, the lack of solidarity ties of the category, and tension between the worker's fragility against the liberty for deciding her working day. Conclusion: The regime of truth produced in the Technical Opinions refers to the reflection on the need to rebuild Nursing in the sense of effectively participating in a political, social, and ideological movement to reinforce the profession.

Keywords: Nursing; Work Journey; Employment.

 

RESUMEN

Objetivo: analizar el orden discursivo dado por los Consejos Regionales de Enfermería de la región nordeste cuando se les pide que expresen sus opiniones en un día de trabajo en el campo de la enfermería. Método: investigación cualitativa, documental, apoyo teórico al orden del discurso de Michael Foucault. Resultados: reveló falta de consenso en las orientaciones de las Opiniones Técnicas relacionadas con el tema de la jornada laboral, la falta de lazos solidarios de la categoría, y la tensión entre la falta de patrimonio de la trabajadora frente a la mera liberalidad para decidir su día de trabajo. Conclusión: Los regímenes de verdad producidos en las Opiniones Técnicas se refieren a la reflexión sobre la necesidad de reconstruir la Enfermería en el sentido de participar efectivamente de un movimiento político, social e ideológico para el fortalecimiento de la profesión.

Palabras clave: Enfermería; Horas de Trabajo; Empleo.

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

Apresenta-se aqui uma análise dos Pareceres Técnicos dos Conselhos Regionais de Enfermagem (Corens) da região nordeste do Brasil, que tratam da jornada de trabalho dos profissionais. Com base no suporte teórico presente na ordem do discurso de Michael Foucault, parte-se do pressuposto que as formações discursivas1 produzidas pelos Pareceres Técnicos, revelam o que pode e o que deve ser dito dentro de um determinado campo do saber, considerando a posição que se ocupa nesse campo, e funciona como uma matriz de sentido porque os falantes nela se reconhecem e as suas significações lhes parecem óbvias.

Desse modo, os atos de fala/discurso obedecem a um conjunto de regras dadas historicamente e que afirmam verdades2 em seu tempo. Nesse sentido, os Pareceres Técnicos chancelados pelo Conselho Regional de Enfermagem (COREN) são verdades porque são proferidos por quem tem o direito privilegiado de fala e, portanto, produzem verdade dentro de um campo discursivo que deve ser seguido pela equipe de Enfermagem.

Ocorre que quem domina o discurso também domina os mecanismos de poder e os corpos2. Revela-se que, sendo a Enfermagem uma prática social, ela depende da presença transformadora do discurso, e os atos discursivos por ela produzidos são condicionados à existência de especialistas autorizados por uma comunidade epistêmica. Nesse ponto, identificamos que os Pareceres Técnicos emitidos pelos COREN exercem uma prática discursiva, que “falam” segundo determinadas regras e expõem as relações que dão sentido dentro do discurso ao produzir documentos sobre temas que se engendram em regularidades discursivas e se tornam-se verdades no jogo de estratégias do campo.

A emissão do Parecer Técnico sobre matéria que envolve a Enfermagem é autorizada pela Lei nº 7.498/86, art. 11, inciso “h”3, que dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem e que assegura ser atividade privativa da enfermeira o pronunciamento, por meio da emissão de parecer técnico de forma fundamentada e circunstanciada, sobre matéria que suscite a dúvida de um determinado campo de ação e /ou especialidade na profissão. Uma vez realizado o parecer, este é apresentado ao conselho profissional e, após apreciado pelo plenário, quando aprovado, segue para publicação e ciência da categoria profissional.

A partir de tais considerações, buscamos responder a seguinte pergunta: Qual é o discurso proferido pelos Corens localizados na região nordeste do Brasil, quando provocados a se manifestar sobre a jornada de trabalho das profissionais de enfermagem? Com o objetivo de analisar a ordem discursiva proferida pelos Conselhos Regionais de Enfermagem da região nordeste quanto instados a se manifestar sobre a jornada de trabalho no campo da enfermagem.

 

 

MÉTODOS

 

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, do tipo documental4; e teve como espaços discursivos os Corens da região nordeste: Bahia, Ceará, Piauí, Alagoas, Pernambuco e Sergipe. O Coren do Rio Grande do Norte não disponibiliza em seu site os Pareceres Técnicos, por isto, não foi possível incluir como fonte nesta pesquisa, e os Corens da Paraíba e do Maranhão não publicaram Parecer que tratam do tema abordado.

Os Pareceres Técnicos foram selecionados de forma intencional por critério de pertinência temática e adequação entre o problema e o campo teórico a partir de temas relacionados à jornada de trabalho (dobra de plantão, plantão 12x36 horas, jornada de plantão 24 horas ininterruptas, abandono de plantão, absenteísmo e o sobreaviso). Não foi estabelecido recorte temporal na seleção dos documentos, como também não foram utilizados pareceres em reformulação, revogados e pareceres jurídicos que estavam dispostos nas pastas dos pareceres técnicos.

A obtenção dos Pareceres técnicos se deu através do acesso aos sites dos COREN, após a seleção foi realizada uma leitura criteriosa sobre o assunto e a fundamentação teórica que sustenta cada parecer.

Utilizou-se a técnica documental, composta em duas etapas: sistematização dos documentos e síntese das informações4. Na primeira etapa, foi feita uma análise preliminar com leitura na íntegra de todos os Pareceres Técnicos que tratam de temas relacionados a jornada de trabalho.

Na segunda etapa, foi realizada leitura atentiva o para extrair as teses que fundamentam as decisões proferidas nos Pareceres Técnicos. Para subsidiar a análise, as categorias foram definidas a partir do suporte teórico da ordem do discurso de Michael Foucault2.

Foram utilizados dados secundários a partir da página virtual do COREN que estão disponíveis para livre acesso ao público. Desse modo, não foi necessária a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), com respaldo na Resolução nº 510, de 07 de abril de 20165.

 

RESULTADOS

 

Foram selecionados selecionadas seis Pareceres Técnicos por atenderam aos critérios de inclusão e respondem à questão de pesquisa, conforme exposto no Quadro 1.

O mapeamento discursivo foi organizado a partir da pluralidade dos discursos presentes nos Pareceres Técnicos dos COREN da região Nordeste do Brasil, de modo que foi considerada a multiplicação dos sujeitos na leitura dos pareceres, e, para isto, seguiram-se os nortes: “Quem fala?”; “Quem está autorizado a falar?”; “Como se relaciona o COREN com as trabalhadoras?”; “Em qual campo de discurso o COREN se situa?”.

O processo de subjetivação presente no mapeamento discursivo não carrega o sentido de individualização do sujeito que escreveu o parecer. O que se vai tratar é a subjetividade presente no documento apresentado como elemento de poder e de domínio publicizado pelo órgão responsável por normatizar e fiscalizar o exercício profissional da enfermagem.

Os dados foram trabalhados a partir dos quatro elementos que fazem parte do enunciado que constitui a ordem do discurso de Foucault2: a referência, o sujeito, o campo associado e a materialidade.

Destaca-se que a matriz discursiva de sentido, o enunciado que aparece fortemente nos Pareceres e que unificam o discurso sobre a jornada de trabalho, é a – falta consenso nas orientações presentes nos Pareceres Técnicos dos COREN do Nordeste relacionados ao tema jornada de trabalho.

Nesse sentido, opera-se de acordo com Foucault2: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”.

Sentidos produzidos por diferentes materialidades produzem regimes de verdades gerados sem amparo em dispositivos legais ou, ainda que sejam citados nos Pareceres Técnicos, produzem procedimentos internos que reorganizam o discurso e, portanto, exercem o autocontrole ao criar o comentário que expande o discurso legal e cria um discurso novo que não traduz o direito material trabalhista, mas soa como verdadeiro para as trabalhadoras porque foi gerado pela autarquia que tem autoridade de fala.


 

Quadro 1Pareceres Técnicos eleitos para compor a amostra do estudo

 

Resolução Conselho Regional de Enfermagem nº/ano

Título do Parecer Técnico

COREN-AL nº 015/2018

Obrigatoriedade do enfermeiro, técnico ou auxiliar de enfermagem em realizar a dobra de plantão na ausência de profissional de enfermagem da equipe subsequente

COREN-CE nº 08/2015

Dobra de plantão.

COREN-PE nº 25/2019

Situação em que o elemento está apto a abandonar o plantão.

COREN-SE nº 04/2018

Passagem e a dobra de plantão.

COREN-BA nº 005/2013

Jornada de 24 h ininterruptas por profissional de enfermagem.

COREN-PI nº 10/2019

Possibilidade ou não da realização de plantão com carga horária de 24 horas ininterruptas.

 


DISCUSSÃO

 

Sabe-se que, quando se trata de Foucault, há de se ter cautela com enquadramentos teóricos de conceituações, mas, para a compreensão de como foi realizado o mapeamento discursivo, é necessário entender que tudo é prática para Foucault e tudo está imerso em relações de poder e saber. Assim, os excertos extraídos dos Pareceres Técnicos são atos sociais que compõem um tecido argumentativo que orienta as ações e a tomada de decisão na Enfermagem orientadas pelos COREN do Nordeste sobre jornada de trabalho.

“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar”2.

Esta é uma das definições de discurso dentre outras propostas na vasta bibliografia do autor. Assim, extraem-se quatro elementos básicos propostos no pensamento foucaultiano que nortearam o processo de análise e discussão dos excertos.

Dito isso, caracterizar-se-ão os quatro elementos que fazem parte do enunciado a partir da caixa de ferramentas discursivas de Foucault1, a referência, o sujeito, o campo associado e a materialidade.

 

A referência.

 

Foucault1 argumentou que “[...] é preciso saber a que se refere o enunciado, qual é seu espaço de correlações, para poder dizer se uma proposição tem ou não um referente [...]”. Em resumo, referência é algo que pode ser identificado, são as condições de possibilidade e, ao analisar a referência, é dada a visibilidade ao enunciado.

Diante disso, o enunciado trabalhado neste estudo refere-se a um campo sobre o labor da Enfermagem diante de discursos díspares e contraditórios que ora declinam a responsabilidade de decidir sobre a jornada de trabalho às chefias de Enfermagem e gestores dos serviços de saúde ou declaram incompetência absoluta para julgar o mérito, criando, assim, uma heterogeneidade discursiva dispersa sobre matéria no âmbito ético/legal que, por consequência, provoca uma insegurança jurídica para a profissão, conforme excertos a seguir.

 

Incompetência deste Conselho Regional de Enfermagem a avaliação técnica do pedido [...] a problemática pode encontrar resolução em representação realizada diretamente no Ministério Público do Estado e /ou Ministério do Trabalho6.

 

[...] temos a competência de disciplinar e fiscalizar o exercício profissional de Enfermagem assegurando uma assistência de qualidade e segura para pacientes e profissionais, não recomendamos esta jornada7.

 

No tocante à dobra de plantão, evidencia-se uma referência assentada na contradição. As teses argumentativas que sustentaram as fundamentações foram construídas de diversas formas e produziram, nos discursos, modalidades enunciativas em um jogo de poder e disputas intradiscursivas.

 

[...] não há enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...] não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências2.

 

        Passam-se a apresentar argumentos no campo da coexistência que corroboram uma polifonia discursiva sobre um mesmo tema/mérito arguido, inclusive, adentrando em matéria que parece antagônica, mas efetivamente não se conflita.

 

Há, em torno da construção deste parecer, um conflito de interesses e de legislações: a que trata da questão trabalhista e a que regula o exercício da Enfermagem. De quem é a primazia?8.

 

Quanto à possibilidade de dobra de plantões, “[...] não há previsão legal à sua obrigatoriedade e, via de consequência, sua exigência”9.

 

Os argumentos apresentam contradição que põe em debate a hierarquia de leis de diferentes espécies normativas. Destaca-se que, na pirâmide hierárquica de Kelsen, a Constituição da República Federativa do Brasil ocupa o topo de modo que o único parecer que considera e cita, em sua fundamentação, a primazia da Carta Magna é o COREN-BA.

A Constituição Federal10, no seu Capítulo II – Dos direitos sociais, prevê, no Art. 7º, inciso XIII, duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais, facultadas a compensação de horários e a redução da jornada mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho., assim,“[...] o fato da autorização para a prestação de trabalho além do limite máximo de dez horas diárias resultar de negociação coletiva não confere legalidade, posto que a matéria é de ordem pública e situa-se fora do poder de negociação dos sindicatos”7.

A jornada de trabalho é matéria de ordem pública disciplinada pela Constituição Federal e que serve de lastro para a elaboração das leis que regem o trabalho. O sistema Conselho Federal de Enfermagem COFEN/ COREN, como autarquia, não tem prerrogativa para legislar sobre matéria de trabalho, mas pode fiscalizar e recomendar desde que amparado nas leis específicas.

Um caminho que oferece as melhores pistas para emitir Parecer Técnico não é colocar o Código de Ética Profissional da Enfermagem (CEPE) como lei máxima quando se trata da matéria que regulamenta o trabalho, tampouco proferir que existe conflito entre as normas porque, efetivamente, não existe, de forma que deve ser criado um consenso entre os Pareceres Técnicos para que não se proliferem discursos tão díspares.

 

O sujeito

 

Refere-se à posição ocupada, uma vez que o discurso presente nos Pareceres Técnicos não se configura como um ato de fala individual de um sujeito. “Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer); mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito”2.

O sujeito que fala é uma autarquia federal criada pela Lei nº 5.905/73, de 12 de julho de 197311, que tem a função de fiscalizar e disciplinar o exercício profissional, elaborar e fazer cumprir o código de ética profissional, aplicar penalidades quando houver infração ética, dentre outras atribuições previstas na lei de criação.

Com relação à jornada de trabalho, o COFEN dispõe da Resolução nº 438/201212 , que trata sobre a proibição do regime de sobreaviso para enfermeiro assistencial, amparada no Art. 244, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho13, e no Parecer nº 008/2017 do COFEN, que trata da jornada de trabalho no regime de 12 x 36 horas e está amparado na Constituição Federal e na Súmula do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que permite, em regime de excepcionalidade, desde que haja acordo ou convenção coletiva que a autorize. Assim, não se trata de mera liberalidade da trabalhadora a escolha de dobra de plantão ou assumir jornada de 24 horas ininterruptas.

 

No que concerne à dobra de plantão, ainda quando autorizada pelo profissional de Enfermagem, “[...] o profissional poderá permanecer no plantão [...] ou até mesmo dobrar o plantão quando se sentir apto fisicamente9.

 

Necessário ponderar se realmente o profissional terá a obrigatoriedade de dobrar uma escala contra seu manifesto desinteresse para além do que prevê a legislação trabalhista. Da mesma forma que o empregado, ao aceitar dobrar o plantão, poderia ser visto pelo empregador como sendo uma intenção do empregado em criar algum embaraço trabalhista para a empresa com fins outros8.

 

Ante ao exposto, há de se ter cautela nos ditos dos pareceres porque a extensão da jornada não é mera liberalidade da trabalhadora, uma vez que a relação do negociado sobre o legislado tensiona a hipossuficiência das profissionais diante dos empregadores e das chefias de Enfermagem. Para além disso, produzir um discurso que coloca a trabalhadora que “negocia” a extensão da jornada sob a suspeita não fortalece laços de solidariedade da categoria.

É preciso que haja um estudo para compatibilizar os Pareceres Técnicos dos COREN com as normativas publicadas pelo COFEN, tendo sempre a lucidez de que o CEPE é uma norma infraconstitucional e, como tal, estabelece os requisitos para o pleno exercício da profissão. Entretanto, destaca-se que o CEPE não é, nem poderia ser, um documento de regras rígidas e específicas14.

O que trata e regula matéria trabalhista para celetista são a Lei nº 13.467, de 201715 , as medidas provisórias eventualmente editadas sobre a matéria e as súmulas editadas pelo TST, sendo que todas as normativas estão subordinadas à lei magna, que é a Constituição Federal de 1988.

 

O campo associado

 

O enunciado coexiste com outros enunciados e com eles correlaciona-se por meio de outros discursos que se organizam e incorporam sentidos ao discurso: “[...] não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências” 2.

A linguagem exposta no Parecer Técnico legitima um ato ideológico, uma vez que, por meio dele, o poder se estabelece, hierarquiza e posiciona a equipe de Enfermagem e, dessa forma, institucionaliza valores que circulam como regime de verdade por meio de um conjunto de regras dadas em um processo sócio-histórico.

Podem-se elencar diversos campos associados com a Enfermagem: o discurso de gênero, da cor/raça, religiosidade, dentre outros. Porém, como demarcados os documentos para análise, delimitou-se extrair destes o campo relacionado ao gênero.

A pesquisa nacional realizada pelo COFEN, em parceria com a Fiocruz16, revelou que o perfil da Enfermagem brasileira é composto predominantemente pelo sexo feminino (84,6%). Mesmo diante deste dado, é fato que a linguagem utilizada nos pareceres faz referência ao “enfermeiro, técnico de Enfermagem”.

O enfermeiro está apto a suspender as atividades quando o local de trabalho não oferecer condições seguras para o exercício profissional e/ou desrespeitar a legislação vigente, resguardando as situações de urgência e emergência17 (grifo nosso).

 

A alegação dos enfermeiros: [...] o fato isolado de passar plantão a apenas um enfermeiro não é garantia de continuidade da assistência 8 (grifo nosso).

 

É importante abordar o significado e a representação tão cara para a profissão por ser representada por mulheres, uma vez que o trabalho feminino se materializa pela vulnerabilidade e assimetria de gênero por meio de uma lógica exploratória de múltiplas jornadas, exposição à violência e assédios moral e sexual no trabalho, doenças ocupacionais, vínculos precários, baixos salários, falta de condições estruturais no trabalho, dentre outros18.

 

A materialidade

 

A materialidade é o quarto elemento que caracteriza o enunciado. Neste estudo, refere-se ao documento que é o Parecer Técnico. Questionou Foucault1: “[...] poderíamos falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado, se uma superfície não registrasse seus signos, se ele não tivesse tomado corpo em um elemento sensível e se não tivesse deixado marca, apenas por alguns instantes – em uma memória ou em um espaço?1 [...]”.

Nos documentos analisados, a materialidade é ancorada no CEPE aprovado pela Resolução COFEN nº 564/201719, em Resoluções do COFEN e, em alguns casos, na CLT13.

Ocorre que, ao fundamentar a matéria requisitada no âmbito da jornada de trabalho, são evidenciados sistemas externos de articulação do discurso que funcionam como procedimentos de exclusão por meio da interdição, separação.

A respeito da interdição, “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”2. Neste item, o direito de fala no parecer é privativo da enfermeira.

A separação, que é outro elemento que limita o discurso, evidencia a divisão dentro da categoria profissional, enquanto o direito de fala (quem pode emitir o Parecer Técnico) é dado à enfermeira, pois “a palavra é dada simbolicamente”2 às técnicas e auxiliares de Enfermagem (que podem suscitar dúvidas perante ao conselho da classe profissional).

Outros procedimentos de controle e delimitação do discurso, denominados por Foucault de procedimentos internos, são compostos pelo comentário, “[...] dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro [...]”2.

No caso dos documentos estudados, significa retomar o discurso e produzir o comentador, que gera novos atos de fala: são “ditos, que permanecem ainda por dizer” 2.

Na perspectiva foucaultiana, encontram-se muitos comentários em jogo de deslocamento nos Pareceres Técnicos: “que permite dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado [...] o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta [...]”2.

 

O supervisor/gerente da unidade deve assumir a assistência, enquanto busca substituição definitiva [...] remanejamento de profissionais de outros setores, desde que tenha habilitação [...] programação da instituição para sobreaviso [...] compensação financeira para o profissional que queira permanecer no serviço [...] não há normativa específica para passagem de plantão elaborada pela autarquia8.

 

Recomendamos que sejam adotadas as medidas necessárias [...] para evitar a dobra de plantão e a sobrecarga do profissional de enfermagem, para a melhoria das condições de trabalho, da qualidade da assistência, a prevenção e o controle de riscos a clientela e ao profissional de Enfermagem20.

 

O comentário produzido nos pareceres evidencia que o comentador revisitou o discurso previamente ancorado em outros documentos e o repete/reafirma ou expande, formando um novo discurso a partir de um discurso originário.

Destaca-se que alguns valores são sinalizados na emissão dos pareceres relacionados à dignidade humana, e os valores éticos da profissão, no zelo referente a segurança do paciente e da saúde das trabalhadoras21.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A ordem discursiva sobre a jornada de trabalho mapeada está assentada em procedimentos que limitam os discursos e produzem sentidos e identidades. Cabe ressaltar que, na ordem do discurso, proposta no pensamento de Foucault, os sentidos são produzidos por diferentes materialidades e cada época produz seus regimes de visualidade de acordo com os múltiplos lugares onde o sujeito se coloca1. Além disto, os documentos selecionados não constituem amostras representativas do fenômeno pesquisado, e podem não permitir fazer inferências aos COREN das demais regiões do Brasil, o que pode configurar como limitação deste estudo.

Os regimes de verdade produzidos nos Pareceres Técnicos remetem à reflexão sobre a necessidade de reconstrução da Enfermagem no sentido de participar de um movimento político, social e ideológico para fortalecer a profissão que dispõe de um piso salarial, porém sem a devida vinculação a regulamentação da jornada de trabalho, situação precária para as trabalhadoras e está infiltrada nos ditos e não ditos dos órgãos representativos da Enfermagem.

Neste estudo, procuram-se evidenciar as condições de existência do discurso a partir de alguns elementos presentes na teoria de Foucault; é um convite às leitoras e a todos, uma provocação para que se possam produzir e refutar regimes de verdade que circulam no trabalho da Enfermagem. Certamente, estar-se-á aberto a novos olhares até porque não foi dito tudo que o discurso dos Pareceres Técnicos produz.

A lente que guiou o olhar na visualização do discurso presente nos documentos analisados levou a um movimento de luta ao assumir uma postura exitosa de dúvidas e desconfiança que Foucault provoca. Ressalta-se que o autor utilizado nunca se propôs a fundar uma teoria, tampouco ser modelo teórico, mas a riqueza e a profundidade da sua obra ampliam, descortinam e convidam para compreender como opera a ordem discursiva.

Conclui-se, em um espaço temporal, com o chamamento para pensar uma Enfermagem para além da arte do cuidar e, como seres políticos, todos precisam se libertar do passado, transformar e ressignificar a valorização no processo de trabalho porque Foucault “não está aí para dizer as verdades sobre as coisas, mas sim para ajudar a compreender de que maneiras, por quais caminhos tudo aquilo que se considera verdade se tornou um dia verdadeiro”22.

 

REFERÊNCIAS

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5.        Ministerio da Saúde (BR). Resolução 510 de 7 de Abril de 2016. O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Extraordinária, realizada nos dias 06 e 07 de abril de 2016 [...]. [Internet]. Brasília: DOU; 2016. [citado 28 de março de 2022]. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/22917581

6.        Conselho Regional de Enfermagem do Piauí. Parecer Coren-PI n. 10/2019 de 28 de maio de 2019. Possibilidade ou não da realização de plantão com carga horária de 24 horas ininterruptas, levando em consideração à saúde do trabalhador de saúde e a segurança na prestação de serviços [Internet]. Teresina (PI): COREN-PI; 2019. [citado 2023 Mar 28]. Disponível em: https://ouvidoria.cofen.gov.br/coren-pi/transparencia/28891/download/PDF

7.        Conselho Regional de Enfermagem Bahia. Parecer Técnico 005/2013. Jornada de 24 hs. ininterruptas por profissional de enfermagem [Internet]. Salvador: Coren-BA; 2013. [citado 2022 Mar 28]. Disponível em: http://ba.corens.portalcofen.gov.br/parecer-tecnico-0052013_8035.html

8.        Conselho Regional deEnfermagem Sergipe. Parecer Coren-SE n. 04/2018 de 16 de fevereiro de 2018. Questões normativas referentes à passagem e a dobra de plantão [Internet]. Aracajú: Coren-SE; 2018. [citado 2023 Mar 28]. Disponível em: http://se.corens.portalcofen.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/PARECER-T%C3%89CNICO-N%C2%BA-004.2018.pdf

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10.      Presidência da República (BR). Casa Civil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. [Internet]. [citado 2022 Mar 28]. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

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13.      Senado Federal (BR). Consolidação das Leis do Trabalho - CLT e normas correlatas. Brasília: Senado Federal; 2017.

14.      Silva RS da. Novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem: um documento inovador. Enferm em Foco [Internet]. 2021 [citado 2023 Mar 28]12(1). Disponível em: http://revista.cofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/3379

15.      Presidência da República (BR). Lei no 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis n o 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim e adequar a legislação às novas relações de trabalho [Internet]. Brasilia; 2017. [citado 2022 Mra 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm

16.      Machado MH. coord. Relatório final da pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: NERHUS-DAPS-Ensp/Fiocruz; Cofen; 2015. [citado 2023 Mar 28]. Disponível em:  http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/pdfs/relatoriofinal.pdf

17.      Conselho Regional de Enfermagem Pernambuco. Parecer Técnico Coren-PE no 025/2019. Situação em que o enfermeiro está apto a abandonar o plantão. Coren-PE; 2019.

18.      Machado MH, Oliveira E dos S de, Lemos WR, Lacerda WF de, Justino E. Mercado de trabalho em enfermagem no âmbito do SUS: uma abordagem a partir da pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil. Divulg Saude Debate. 2016;56:52-69.

19.      Conselho Federal de Enfermagem. Resolução Cofen No 564/2017, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem [Internet]. Brasília (DF); 2017.

20.      Conselho Regional de Enfermagem Ceará. Parecer Coren-CE no 08/2015 de 28 de abril de 2015. Parecer Técnico sobre dobra de plantão. Coren-CE; 2015.

21.      Nobre TCN, Heliodoro EA, Santa Rosa D de O. Valores Pessoais e Profissionais de Enfermeiros: uma revisão integrativa. Enferm em Foco [Internet]. 2021 [citado 2023 Mar 20];12(1):132-8. Disponível em: http://revista.cofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/3487

22.      Veiga-Neto A. Na oficina de Foucault. In: Gondra JG, Kohan WO, org. Foucault: 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica; 2006.

Todos os autores contribuiram na confecção do artigo

Fomento: não há instituição de fomento

Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519

 

Rev Enferm Atual In Derme 2023;97(2):e023057