FLUXO DE AÇÕES PARA APOIAR O CUIDADO DO ENFERMEIRO À USUÁRIOS DE ÁLCOOL

 

FLOW OF ACTIONS TO SUPPORT NURSE CARE FOR ALCOHOL USERS

 

FLUJO DE ACCIONES DE APOYO A LA ATENCIÓN DE ENFERMERÍA A USUARIOS DE ALCOHOL

 


Vagner Ferreira do Nascimento1

Alisséia Guimarães Lemes2

Ana Cláudia Pereira Terças Trettel3

Marciana Gomes Sobrinho4

Poliana Roma Greve Nodari5

Abner Eliezer Lourenço6

Liliane Santos da Silva7

Margarita Antonia Villar Luis8

 

1Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. ORCID ID: https://0000-0002-3355-163X E-mail: vagnernascimento@unemat.br

2Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Barra do Garças, Mato Grosso, Brasil. ORCID ID: https://0000-0001-6155-6473  E-mail: alisseia@hotmail.com

3Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil. ORCID ID: https://0000-0001-8761-3325 E-mail: ana.claudia@unemat.br

4Prefeitura Municipal de Várzea Grande, Várzea Grande, Mato Grosso, Brasil. ORCID ID: https://0000-0001-6542-219X  E-mail: marcisobrinho@gmail.com

5Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Cáceres, Mato Grosso, Brasil. ORCID ID: https://0000-0002-6526-4758  E-mail: polianaroma@unemat.br

6Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. ORCID ID: https://0000-0002-3532-3905 E-mail: abnereliezer@gmail.com

7Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. ORCID ID: https://0000-0001-8639-874X  E-mail: lilianesantos@usp.br

8Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. ORCID ID: https://0000-0002-9907-5146 E-mail: margarti@eerp.usp.br

 

Autor correspondente

Vagner Ferreira do Nascimento

Endereço: MT-358, 7 - Jardim Aeroporto, Tangará da Serra – MT - Brasil, CEP 78300-000            
E-mail: vagnernascimento@unemat.br
Contato: +55(65)3311-4900

RESUMO

Objetivo: Propor um fluxo de ações para apoiar o trabalho do enfermeiro no cuidado à usuários de álcool na Atenção Primária à Saúde. Métodos: Estudo exploratório, do tipo metodológico, realizado em agosto de 2022, em município do interior de Mato Grosso, Brasil. A coleta de dados foi dividida em duas etapas, sendo a primeira junto a usuários do serviço de saúde e a segunda com enfermeiros da Atenção Primária à Saúde, com aplicação do Alcohol Use Disorders Identification Test. A análise dos dados, deu-se pela análise temática. Para a elaboração do fluxo, considerou-se o diagnóstico que enfermeiros e usuários fizeram sobre o que precisaria para melhorar a assistência, chegando as necessidades, agrupadas em eixos temáticos que consolidaram uma estrutura didática, o fluxo de ações. Resultados: O fluxo foi apresentado em três eixos: conhecimento do território e demandas, sensibilização e capacitação, e interlocução com serviços especializados. Conclusão: Com esse fluxo de ações será possível planejar a assistência e subsidiar os processos de trabalho do enfermeiro e equipe na gestão do cuidado à usuários de álcool, de forma clara e estratégica.

Palavras chave: Alcoolismo; Cuidados de Enfermagem; Pesquisa Metodológica em Enfermagem.

 

ABSTRACT

Objective: Propose a flow of actions to support the work of nurse in the care of alcohol users in Primary Health Care. Method: Exploratory study, of the methodological type, carried out in August 2022, in a municipality in the interior of Mato Grosso, Brazil. Data collection was divided into two stages, the first with health service users and the second with Primary Health Care nurses, with the application of the Alcohol Use Disorders Identification Test. Data analysis was performed by thematic analysis. For the elaboration of the flow, the diagnosis that nurses and users made about what would be needed to improve the assistance was considered, arriving at the needs, grouped into thematic axes that consolidated a didactic structure, the flow of actions. Results: The flow was presented in three axes, knowledge of the territory and demands, awareness and training, and dialogue with specialized services. Conclusion: With this flow of actions, it will be possible to plan the assistance and support the work processes of the nurse and the team in the management of care for alcohol users, in a clear and strategic way.

Key words: Alcoholism; Nursing Care; Nursing Methodology Research.

 

RESUMEN

Objetivo: Proponer un flujo de acciones para apoyar el trabajo de lo enfermero en el cuidado de los consumidores de alcohol en la Atención Primaria de Salud. Método: Estudio exploratorio, de tipo metodológico, realizado en agosto de 2022, en un municipio del interior de Mato Grosso, Brasil. La recolección de datos se dividió en dos etapas, la primera con usuarios de servicios de salud y la segunda con enfermeros de la Atención Primaria de Salud, con la aplicación del Test de Identificación de Trastornos por Consumo de Alcohol. El análisis de datos se realizó por análisis temático. Para la elaboración del flujo, se consideró el diagnóstico que los enfermeros y usuarios hicieron sobre lo que sería necesario para mejorar la asistencia, llegando a las necesidades, agrupadas en ejes temáticos que consolidaron una estructura didáctica, el flujo de acciones. Resultados: El flujo se presentó en tres ejes, conocimiento del territorio y demandas, sensibilización y formación, y diálogo con servicios especializados. Conclusión: Con ese flujo de acciones, será posible planificar la asistencia y apoyar los procesos de trabajo del enfermero y del equipo en la gestión del cuidado a los usuarios de alcohol, de forma clara y estratégica.

Palabras clave: Alcoholismo; Atención de Enfermería; Investigación Metodológica en Enfermería.


 


INTRODUÇÃO

 

O álcool é a substância psicoativa mais consumida e aceita no mundo. Globalmente, o álcool é responsável por quase 50% das mortes anuais, relacionadas principalmente a fatores externos(1). Há inúmeros aspectos que implicam e interferem no consumo de álcool, como cultura e crenças, disponibilidade de pontos de venda na comunidade, crises e problemas socioeconômicos, ciclos de vida, histórico familiar, transtornos mentais, baixa efetividade de ações e serviços na comunidade voltados à prevenção e acompanhamento, e interferências de variáveis do custo-consumo (teor alcoólico, preço e aquisição da bebida)(1-3).  

No Brasil, os motivos que fazem as mulheres consumirem álcool se relacionam à socialização, e para os homens com finalidade de aliviar as tensões e encontrar bem-estar(4). No entanto, embora haja motivos diversos para esse consumo e prevalência distinta entre homens e mulheres(5), há recomendações que desconsideram a diferença entre os gêneros para definição de políticas e estabelecimento de estratégias de cuidado, pois, apesar de as particularidades fisiológicas e psicoemocionais, velocidade de intoxicação, período de dependência e probabilidades de recuperação, os riscos à saúde e os impactos sociais são semelhantes(6).

Pessoas na condição de dependência química possuem taxas mais altas de comorbidades médicas, incluindo doença hepática, doença renal crônica, doença vascular isquêmica e doença pulmonar obstrutiva crônica(7). Além disso, mostram-se com nível significativamente mais alto de ansiedade, comportamento hostil, sintomas de depressão e obsessivo-compulsivos, especialmente entre aqueles com idade mais jovem, pessoas com baixa escolaridade e contato com o álcool em faixas etárias menores(8).

Serviços de base comunitária para atendimentos não emergenciais de álcool, trazem maior segurança e retaguarda aos usuários(9). Todavia, o processo de estigmatização decorre de duas perspectivas, a moral/criminal e da própria doença(10). Isso dificulta o acesso de muitas pessoas com problemas de álcool aos serviços tradicionais(11), optando muitas vezes, quando conscientes da necessidade de cuidado, por modalidades de apoio, como as plataformas digitais, consideradas mais flexíveis e/ou com menos exposição(12)

Nos Estados Unidos, as taxas de rastreamento e avaliação do álcool são relativamente altas entre adultos que comparecerem aos serviços de saúde, mas as taxas de intervenção são baixas, mesmo quando os indivíduos são identificados como usuários, em consumo de risco, uso nocivo e com transtornos pelo uso de álcool(13). Esse comportamento prejudica o acesso e a adesão dos usuários a projetos terapêuticos, pois a procura espontânea por ajuda frente às demandas de abuso e dependência de álcool em geral, mostra-se pequena(14).

No território nacional, os serviços que integram a Atenção Primária à Saúde (APS) se destacam como grandes acolhedores e com potencial para gerenciar as demandas de cuidados exigidas por esse perfil de clientela, bem como há evidências que intervenções realizadas a partir da primeira consulta de enfermagem nesse contexto assistencial são eficazes para reduzir o consumo de álcool em indivíduos com padrões de uso perigoso ou nocivo(15).

Na APS os enfermeiros se destacam por gerenciar toda a assistência desenvolvida no serviço de saúde, possuir vínculo com a comunidade sob sua responsabilidade e contribuir diretamente na mudança no estilo de vida, com mitigação dos fatores de risco, assim como por promover a capacidade de autonomia e auto-avaliação do usuário no próprio cuidado(16). Por outro lado, alguns enfermeiros da APS também apresentam sentimentos negativos frente à demanda de usuários de álcool que podem interferir no processo de cuidado(17).

No Brasil, nem todos os serviços da APS utilizam instrumentos para triagem ou identificação de necessidades de cuidados. É comum observar o uso de diversos instrumentos somente para fins científicos e poucos direcionados à prática assistencial, de intervenção ao usuário de álcool. No Rio Grande do Sul (BR), para identificar a fase do consumo de usuários de álcool e as ações direcionadas ao seu cuidado, os profissionais se baseiam na periodicidade de uso; quantidade e tipo de substância utilizada; repercussões do uso indevido; e o lugar que ocupa na vida da pessoa(18), porém sem a utilização de um instrumento específico padrão.

Especificamente, na consulta de enfermagem junto aos usuários de álcool, a inclusão de instrumentos facilita, ordena e personaliza o cuidado(19). Assim, julgou-se importante investir na construção de um fluxo de ações que possa auxiliar o trabalho do enfermeiro, durante sua rotina de trabalho na APS, a fim de fortalecer o trabalho da equipe interdisciplinar na comunidade, como apontar possíveis caminhos para o enfermeiro prestar um cuidado qualificado aos usuários de álcool. Diante disso, esse estudo teve como objetivo propor um fluxo de ações para apoiar o trabalho do enfermeiro no cuidado à usuários de álcool na APS.

 

MÉTODOS

 

Trata-se de estudo exploratório e metodológico. Os estudos com abordagem metodológica utilizam métodos de obtenção, organização e análise de dados, que abordam a construção de instrumentos (escalas, protocolos, mapas, fluxos, dentre outros instrumentos) de uma determinada área do conhecimento. Os fluxos de ações podem ser apresentados de variadas formas, horizontais, verticais, circulares e outros, uma representação gráfica com descrição objetiva e clara(20).

Para fundamentar a construção do fluxo, realizaram-se duas coletas de dados, por uma única enfermeira pré-treinada, junto aos sujeitos que integram a consulta de enfermagem: enfermeiros e pacientes. Essas etapas ocorreram em um município de médio porte, com 107.631 habitantes, no interior de Mato Grosso, Região Central do Brasil(21). A escolha desse município ocorreu por corresponder a um polo regional de saúde e não possuir uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) estruturada para o perfil da região.

O estudo foi composto por dois perfis de participantes (usuários do serviço e enfermeiros). Quanto aos usuários do serviço, foi critério de inclusão, ser maior de 18 anos, auto informar consumo de algum tipo de bebida alcoólica, independente da frequência e quantidade ingerida. Como critério de exclusão, estar atualmente participando dos Alcoólicos Anônimos (AA), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ou outra modalidade de serviço/grupo voltado ao cuidado de pessoas com demandas em álcool e/ou outras drogas; residir tempo inferior a seis meses nos bairros sob responsabilidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) local, por considerar a possível não familiaridade com a comunidade. Em relação aos enfermeiros, como critério de inclusão, atuar há dois ou mais anos na ESF. Foram excluídos os profissionais afastados por atestado médico ou em licenças no período de coleta de dados, ou ainda àqueles ausentes após três tentativas de entrevista.

Para coletar as informações, utilizou-se entrevistas com um roteiro norteador e o Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Na primeira etapa do estudo (junto aos usuários do serviço), a amostragem foi não probabilística, aleatória e o tamanho amostral definido pelo método de saturação de dados, ou seja, até atingir o objetivo do estudo (n=60). Essa etapa ocorreu no período de agosto a dezembro de 2020, em bairros periféricos cobertos por equipes de ESF (população habitante entre 4000 e 5000 pessoas). A seleção das ruas e residências foi aleatória. Caso a residência visitada estivesse fechada, não houve tentativas posteriores, sendo escolhida outra residência de forma aleatória. Para a seleção do participante na residência, considerou-se aquele que estava no momento e o primeiro que preenchesse todos os critérios de inclusão. Esses participantes foram entrevistados, e apenas foi incluído um membro de uma mesma casa e família, independente do grau de parentesco. A entrevista foi norteada por roteiro semiestruturado, com perguntas fechadas (dados sociodemográficos) e abertas (aspectos sobre necessidades de cuidado), elaborado pelos próprios pesquisadores. Este roteiro foi pré-testado para incluir possíveis adequações, com população semelhante que não integrou a amostra final. As entrevistas com os usuários de álcool tiveram duração média de 30 minutos.

Na segunda etapa do estudo (junto aos enfermeiros das ESF), a amostragem foi não probabilística, por conveniência e o tamanho amostral também definido pelo método de saturação de dados. Esta etapa ocorreu em novembro e dezembro de 2021 com o convite a totalidade de enfermeiros que atuavam nas ESF do município investigado (n=27), desse total, 16 atenderam aos critérios de elegibilidade. Aos enfermeiros foi realizada uma visita prévia in loco no serviço de saúde para apresentar o estudo e dar os esclarecimentos necessários. Após esse momento, conforme aceite e disponibilidade do profissional, a entrevista foi agendada ou realizada na sequência do aceite, conforme desejo do participante. A coleta ocorreu por meio de entrevista individual, em sala reservada na própria ESF, utilizando um roteiro semiestruturado, com questões fechadas (dados sociodemográficos) e abertas (aspectos sobre o cuidado ao usuário de álcool) criado pelos próprios pesquisadores, que também foi testado com outros profissionais, com vistas a adequar a versão final do roteiro. A duração média das entrevistas foi de 20 minutos.

Para verificar o padrão do uso de álcool pelos participantes do estudo (usuários do serviço de saúde e enfermeiros), utilizou-se o AUDIT. Um questionário desenvolvido em 1982 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), desenvolvido especialmente para ser utilizado em serviços de APS, no contexto da população mundial. Compõe-se de 10 perguntas, cada questão tem uma margem de 0 a 4, possibilitando uma pontuação final de 0 a 40 pontos. Tem como resultado, baixo consumo (0 a 7 pontos), consumo de risco (8 a 15 pontos), uso nocivo (16-19 pontos) e provável dependência (20-40 pontos). Em 2003, a versão original do AUDIT foi traduzida e validada no Brasil(22).

O AUDIT foi aplicado para os enfermeiros, pois há evidências que esses profissionais que consumem álcool possuem atitudes mais positivas em relação ao paciente que também consome álcool do que os demais profissionais abstêmios, e isso provavelmente revela outras formas de cuidado(17).

O material empírico das entrevistas foi organizado em planilhas no Microsoft Excel 2019, com a construção de Tabela (distribuição de frequências) e Quadro (agrupamento temático). A análise das entrevistas ocorreu pela análise de conteúdo, na modalidade de análise temática, sendo que a partir do agrupamento temático, chegou-se a eixos que consolidaram uma estrutura didática, um fluxo em formato de círculo.

O estudo respeitou os aspectos éticos em pesquisa, em conformidade com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), tendo aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), com CAAE: 17172919.0.0000.5166 e parecer n. 3.501.822. Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

           

Os enfermeiros participantes possuíam entre 28 a 50 anos (n=16), predominantemente do sexo feminino (93,7%), especialistas em saúde pública ou saúde da família (68,7%), com média de cinco anos de atuação na ESF. A maioria julga ser possível tratar e acompanhar usuários de drogas na Atenção Primária (93,7%), porém em nenhuma ESF de atuação desses participantes há programas ou ações voltadas a esse público. Afirmam não conhecer e tampouco utilizar instrumentos de rastreio. Nunca perguntam para o paciente sobre seu consumo e uma parcela (62,5%) também não realiza controle/registros desses pacientes. 

Os usuários possuíam entre 19 e 72 anos (n=60), de ambos os sexos, a maioria solteiros (45,0%) e com ensino fundamental incompleto (58,3%). Não refere ter problemas de saúde (81,6%). Sabem onde buscar cuidado e tratamento para o alcoolismo (75,0%), citando as Comunidades Terapêuticas (38,3%), os CAPS (20,0%), as ESF (6,6%) e o AA (6,6%).


 

Tabela 1 - Distribuição do padrão de uso entre os dois grupos de participantes, conforme AUDIT. Mato Grosso, Brasil. (n=76)

Participantes

 

Padrão de uso

Enfermeiros (n=16)

Usuários do serviço (n=60)

Sexo feminino

Sexo masculino

Sexo feminino

Sexo

masculino

n

%

n

%

n

%

n

%

Baixo consumo

12

75,0

-

-

11

18,3

4

6,6

Consumo de risco

1

6,2

1

6,2

13

21,6

6

10,0

Consumo nocivo

-

-

-

-

5

8,3

8

13,3

Provável dependência

-

-

-

-

1

1,6

12

20,0

Não consome

2

12,5

-

-

-

-

-

-

Fonte: Autores.

 


Na Tabela 1, verifica-se entre os usuários do sexo feminino o predomínio do consumo de risco (21,6%) e o padrão de provável dependência no masculino (20,0%), também com destaque para o consumo nocivo (13,3%). Entre os participantes enfermeiros, a maioria (75,0%) apresentou padrão de baixo consumo.

No Quadro 1 são apresentadas as considerações dos enfermeiros a respeito do atendimento ao usuário de álcool, caracterizando aquilo que consideram ser necessário oferecer. Do lado dos participantes usuários também aparecem as necessidades que gostariam de ser atendidas.


 

Quadro 1 - Agrupamento temático sobre o que poderia melhorar o atendimento da ESF na perspectiva dos enfermeiros (atendimento dos usuários de drogas) e usuários do serviço (seu próprio atendimento). Mato Grosso, Brasil. (n=76)

Participantes/ Padrão de Uso

Enfermeiros (n=16)

Usuários do serviço (n=60)

Sexo feminino

Sexo masculino

Sexo feminino

Sexo masculino

 

 

 

 

 

 

 

 

Baixo consumo

Atendimento dos profissionais do CAPS* dentro da ESF**;

Acolhimento**** de qualidade e olhar humanizado;

Conhecer o território;

Ter registro desses pacientes (inicial e acompanhamento);

Presença de equipe multiprofissional: psicólogo, terapeutas;

Implantar NASF***;

Acolhimento imediato do usuário que procura a unidade;

Evitar agendamentos; Fazer busca ativa das pessoas em provável dependência, oferecer apoio;

Adequar a planta física da ESF;

Capacitar a equipe.

 

 

 

 

 

 

 

 

-

Conseguir agendar consultas e exames;

Receber resultados de exames em casa.

 

 

 

 

 

 

 

 

-

 

 

 

Consumo de risco

Acompanhamento mensal e registro durante o tratamento em conjunto com o CAPS AD;

Encaminhamento quando necessário.

Incentivo da gestão;

Equipe compreender a importância da assistência;

Equipe ajudar na formação de grupos;

Ter um plano de trabalho em comum para acompanhar os pacientes

Proatividade de Agentes Comunitários de Saúde.

Ter atendimentos mais rápidos;

Ser encaminhada e atendida (se profissional faltou ou reencaminhamento).

Ter atendimentos mais rápidos.

 

 

Consumo nocivo

Capacitação da equipe da ESF para que eles possam criar um ambiente acolhedor para essa população.

 

 

-

Ser melhor atendida;

Resolver o que a gente precisa, e não perder tempo.

Poderia ter mais médicos para atender;

Ter atendimentos mais rápidos;

Às vezes, faltam medicamentos.

Provável dependência

 

-

 

 

-

 

-

 

-

 

Não consome

 

-

 

 

-

 

-

 

-

*CAPS: Centro de Atenção Psicossocial.

**ESF: Estratégia Saúde da Família.

***NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família.

****Acolhimento: uma prática presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, podendo acontecer de formas variadas.

 


Considerando o diagnóstico que os profissionais fazem do atendimento, conforme o padrão de consumo de álcool, percebe-se que suas prioridades se situam em três eixos – pessoas do território sob sua responsabilidade; abordagem do usuário; e instalações e pessoal.

No primeiro eixo, no baixo risco apontam, conhecer o  território e fazer busca ativa; o segundo eixo, na abordagem do usuário, fazer o acolhimento humanizado e imediato para os que buscam ajuda, a inserção de especialistas no serviço ou uma integração do serviço especializado com a APS, com vistas a evitar agendamentos e encaminhamentos ao serviço especializado; o terceiro eixo, diz respeito à adequação das instalações físicas, com vistas a melhorar os espaços para acolhimento desse usuário e ao treinamento da equipe no atendimento.

No consumo de risco, no segundo eixo, alertam para o acompanhamento mensal do usuário durante o tratamento em serviço especializado, equipe ajudando a formar grupos educativos com o mesmo perfil de consumo, como medida de apoio e discussão de estratégias de cuidado, exigir mais iniciativa dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS); e no terceiro eixo, sensibilizar e capacitar a equipe e gestão para a assistência a esse cliente, isso também promove um clima de acolhimento.

No caso dos usuários, conforme sua categorização pelo padrão de uso, o eixo principal que se refere à qualidade da assistência prestada no atendimento, parece haver demora para que esses usuários tenham acesso ao seu tratamento ou que sua demanda seja atendida, seja por carência de profissionais médicos que atendam, façam com rapidez o encaminhamento ou agendem novo encaminhamento a serviço especializado, seja por falta de medicamentos. Fica evidente que a maioria não se sente bem atendido.

Na elaboração do fluxo, considerando o diagnóstico que enfermeiros e usuários fazem sobre o que precisa ser feito para melhorar a assistência, destacam-se as seguintes necessidades:

1. Conhecimento do território em termos de demandas de usuários de álcool nos diferentes padrões (rastreio junto ao público frequente no serviço e busca ativa).

2. Sensibilização e Capacitação da equipe na abordagem do usuário (treinamentos breves com conteúdos essenciais - facilitação de acesso ao tratamento, agilidade em consultas ou encaminhamentos; formas de acolher empáticas sem julgamentos morais; treinamento na aplicação de instrumentos de rastreio/diagnósticos e formas de intervenção que podem ser utilizadas por enfermeiros e equipe, com registro em prontuários e construção do Projeto Terapêutico Singular -PTS).

3. Sensibilização dos Gestores sobre a importância do tema - apresentar relatórios com perfil epidemiológico local com as demandas existentes: as atendidas e as à espera de atendimento por falta de pessoal e espaços adequados para atendimento. Lembrar que padrões de baixo consumo e consumo de risco são mais fáceis de abordar e tratar do que o uso nocivo e da dependência, além de que os iniciais são menos onerosos aos cofres públicos.

4. Incentivar o contato com os serviços especializados; registrar, acompanhar e monitorar o tratamento; solicitar ao serviço especializado informações sobre a adesão ao tratamento, controlar a ocorrência de lapsos e recaídas na comunidade mediante as visitas domiciliares, solicitar a colaboração da família ou acompanhantes próximos, dar o retorno das informações da APS ao serviço especializado.

No final, observou-se que os eixos se reduziram a três que atuando de maneira circular e contínua podem melhorar a qualidade da assistência ao usuário, um anseio desse grupo.


 

Figura 1 - Fluxo de ações para apoiar o trabalho do enfermeiro no cuidado à usuários de álcool na Atenção Primária à Saúde. Outubro de 2022. Mato Grosso, Brasil.

Fonte: Os autores

 


Os resultados mostram uma percepção bastante realista do seu local de trabalho e em certa medida desses usuários, no entanto carecem de recursos de conhecimento especializado (talvez por isso tenha sido mencionada a solicitação de psicólogos no serviço), de interlocução com o serviço especializado e aparentemente, da sensibilidade de gestores para esse problema, que pode não estar sendo percebido como uma necessidade de saúde da população e encarado com algum nível de preconceito. Isso não difere dos dados de outros estudos brasileiros, nos quais parte considerável dos profissionais sente não ter o preparo para lidar com prevenção e promoção da saúde devido sua formação centrada na doença(23,24).

Entende-se que é importante investir na formação continuada desses profissionais a partir dos princípios da educação permanente, problematizando as demandas sociais do território onde atuam e considerando tanto as condições socioeconômicas e estruturais dos profissionais como as dos usuários dos serviços de saúde(25). Daí o fluxo ter incluído o eixo do conhecimento desse território com as demandas de usuários que o habitam e daqueles que trabalham nele, atuando na assistência.

Assim como mencionado pelos enfermeiros participantes deste estudo, na APS fatores como carência de recursos (humanos, financeiros e físicos) e a falta de integralidade e intersetorialidade da rede assistencial, limita e até, impossibilita as ações de promoção, prevenção e reabilitação(26,27). Por isso, o trabalho de prevenção ao uso de álcool e outras drogas não pode mostrar-se desconexo de análises conjunturais, visando conscientizar, além dos grupos da população, os profissionais e os gestores(28). Logo, tem-se as sugestões de ações/procedimentos apresentados nos eixos do fluxo.

Como limitação do estudo, destaca-se possíveis influências do período pandêmico da COVID-19 quanto ao padrão de uso de álcool verificado; e a construção de fluxo baseada em população de contexto específico, que embora se assemelhe a outros territórios, pode necessitar de adaptações para uma aplicação em outras populações onde a RAPS está em fases e condições de estruturação distintas. Ainda assim, a construção desse fluxo de ações recoloca a atenção em saúde mental, particularmente junto à usuários de álcool, como um desafio mais alcançável e exequível a partir da APS.

 

CONCLUSÃO

 

O percurso de construção do fluxo de ações para apoiar o cuidado de enfermeiros e equipe à usuários de álcool, revelou que apesar de haver o reconhecimento dos enfermeiros e da própria comunidade em reduzir o consumo de álcool e a importância dos seus impactos não somente na saúde física e mental como na dimensão social e econômica, o alcoolismo segue concebido como um hábito aceitável e não grave, o que indica entre outros aspectos, menos investimentos e motivação dos profissionais em buscar e assistir essa demanda. Para tanto, com esse fluxo de ações será possível planejar a assistência e organizar a geração de informações e processos de trabalho do enfermeiro nessa gestão do cuidado, de forma clara e estratégica.

Além disso, a utilização desse fluxo poderá fomentar o princípio da longitudinalidade, característica central deste nível assistencial, e que para o usuário de álcool é fundamental, na medida que os vínculos estabelecidos ressoem no fortalecimento da percepção de amparo, perseverança e consciência sobre sua saúde e cuidados, aspectos que aumentam o entendimento sobre suas necessidades e adesão ao cuidado terapêutico.

                     

REFERÊNCIAS

 

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Submissão: 16-10-2022

Aprovado:  28-11-2022