ARTIGO DE REFLEXÃO
O USO CLÍNICO DO BRINCAR PARA AVALIAÇÃO DA CRIANÇA ATÍPICA: CONSIDERAÇÕES PARA O ENFERMEIRO
CLINICAL USE OF PLAY FOR ASSESSMENT TO ATYPICAL CHILD: CONSIDERATIONS TO THE NURSES
EL USO CLÍNICO DEL JUEGO PARA LA EVALUACIÓN DEL NIÑO ATÍPICO: CONSIDERACIONES PARA EL ENFERMEIRO
1Joseph Dimas de Oliveira
1Universidade Regional do Cariri, Crato, Brasil, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8105-4286
Autor Correspondente
Joseph Dimas de Oliveira
Sítio Boa Vista, Distrito do Arajara, Barbalha-CE, CEP 63180-000, (88) 99651-5656, joseph.oliveira@urca.br.
Submissão: 29-10-2023
Aprovado: 14-09-2024
RESUMO
Objetivo: Apresentar abordagens de cuidado à criança embasadas no brincar Método: Trata-se de um estudo de opinião baseado na compreensão do brincar como subsídio para a avaliação do enfermeiro de crianças com desenvolvimento típico e atípico em serviços públicos ou privados. Resultados: O uso do brincar enquanto estratégia de cuidado à criança é um campo em expansão, especialmente no cuidado à criança com autismo. Conclusões ou Considerações Finais: Propõe-se, assim, que o estudo do brincar seja expandido ao longo da formação do enfermeiro de forma a viabilizar novas técnicas, métodos e disciplinas científicas mediadas pela ludicidade.
Palavras-chave: Jogos e Brinquedos; Ludoterapia; Transtorno do Espectro Autista.
ABSTRACT
Play as a strategy of care with children is a trend field, especially in terms of child with autism disorder. Theoretical study, reflexional based in the comprehension of play as base for implementation of nursing care in public and private settings. Play can help nurses in evaluation and interventions with typical and atypical children and constitute, nowadays, one field in expansion and deficit of qualified professionals.
Keywords: Play and Playthings; Play Therapy; Autism Spectrum Disorder.
RESUMEN
El uso de juegos en cuanto estrategia de cuidado a los niños/as es un campo de actuación en expansión, sobre todo en el cuidado a los niños/as con autismo. Se trata de un estudio de reflexión basado en la comprensión del jugar como subsídio para la implementación del cuidado de enfermería en servicios públicos o privados. El juego auxilia al enfermero en la evaluación y en la intervención junto a niños/as típicos u atípicos y se constituye, actualmente, en una área de actuación en expansión y con déficits de profesionales. Se propone, por lo tanto, que el estudio de lo juego sea ampliado en la formación del enfermero para viabilizar nuevas técnicas, métodos y disciplinas científicas mediadas por el lúdico.
Palabras clave: Juegos y Juguetes; Ludoterapia; Transtorno del Espectro Autista.
INTRODUÇÃO
O brincar pode ser utilizado,
clinicamente, como método de avaliação ou intervenção de crianças com
desenvolvimento típico ou atípico. Com o aumento dos casos suspeitos de
transtorno do espectro autista (TEA), aumenta a demanda de profissionais
qualificados em instrumentos apropriados para a triagem e investigação
diagnóstica. Os/as enfermeiros/as podem qualificar melhor sua atuação frente a
criança suspeita de autismo utilizando instrumentos clínicos baseados no
brincar e validados clinicamente. Assim, os/as enfermeiros/as podem se
qualificar no uso clínico desses instrumentos e ampliar o seu escopo de prática
e contribuir na redução das filas de crianças que aguardam avaliações gerais
e/ou especializadas ou mesmo atuar de forma autônoma (Maia, 2020; ABPMC, 2020)1, 2 . O objetivo deste artigo é
discutir o papel do enfermeiro frente à necessidade de avaliação de crianças
com suspeita de autismo, focando no uso de instrumentos padronizados e
interdisciplinares.
Desenvolvimento
O aumento do número de crianças em investigação e daquelas que, de fato, recebem o diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA) é uma realidade ao redor do mundo, o que vem exigindo a reorganização dos sistemas de saúde dos países. Estudos recentes têm apontado prevalência do TEA na população geral entre 0,6 a 1% das pessoas (Li, LI, Liu, 2020)3. O último estudo apontou prevalência de 27.6 para 1,000 crianças, ou seja, 1 caso de TEA para cada 36 crianças, sendo 3,8% mais prevalente em meninos do que em meninas (Maenner, Warren, Williams et al, 2023)4.
O TEA é um fenômeno complexo, desafiador e multifacetado, tornando a avaliação e a intervenção igualmente complexas, desafiadoras e multifacetadas. A avaliação adequada frente a criança suspeita de TEA envolve anamnese, exame físico e exame psiquiátrico. A avaliação do TEA engloba a triagem e a investigação diagnóstica. O processo de avaliação, entretanto, pode demandar muito tempo. Para facilitar esse processo, diversos instrumentos podem ser utilizados para otimizar o trabalho da equipe multiprofissional (Siquara, 2022)5. Divide-se a Avaliação do TEA em dois níveis: triagem e investigação diagnóstica.
Os instrumentos de triagem devem ser utilizados para identificar crianças em risco para TEA. Os instrumentos de investigação diagnóstica, por sua vez, são utilizados para confirmar ou descartar o diagnóstico de TEA. Os serviços de atenção primária à saúde são os serviços mais indicados para o uso dos instrumentos de triagem, enquanto os serviços de atenção secundária são os mais indicados para utilizar os instrumentos de investigação (Losapio et al, 2022)6.
Os instrumentos de triagem podem ser classificados como nível 1 e nível 2. Os instrumentos de triagem nível 1 devem ser utilizados em grandes populações para identificar crianças com algum risco para TEA, são mais amplos e devem ser preenchidos a partir de entrevistas com os adultos que cuidam da criança (Johnson e Myers, 2007; Choueiri e Wagner, 2015). Os serviços de atenção primária à saúde devem utilizar instrumentos de triagem de nível 1 ou 2, de acordo com a organização de cada serviço (Losapio et al, 2023; Johnson e Myers, 2007; Choueiri e Wagner, 2015)6-8
Os instrumentos The Modified Checklist for Autism in Toddlers, Revised with Follow-UpM-CHAT-R/F, o Ages and Stages Questionnaire (ASQ), o Brief Infant Toddler Social and Emotional Assessment (BITSEA), o Parents’ Evaluation of Developmental Status (PEDS) e a Aberrant Behavior Checklist (ABC) são exemplos de instrumentos de triagem nível 1 e, portanto, identificam crianças em risco para TEA. Em geral, são aplicados através da entrevista com os familiares/cuidadores da criança7, 8.
Os instrumentos de triagem nível 2 devem ser utilizados com as crianças que testaram positivo nos instrumentos de nível 1 e servem para confirmação ou descartar se a criança tem ou não risco para TEA. Pode-se identificar instrumentos que devem ser aplicados junto aos adultos que cuidam da criança por meio de entrevistas e outros instrumentos aplicados por meio da interação com a criança. No primeiro caso, tem-se instrumentos como o Baby and Infant Screen for Children with aUtIsm (BISCUIT), o First Year Inventory (FYI 2.0), a Gilliam Autism Rating Scale - Third Edition (GARS) e o Childhood Autism Rating Scale (CARS) enquanto as escalas interativas mais difundidas são a Systematic Observation of Red Flags (SORF), a Screening Tool for Autism in Toddlers and Young Children (STAT), a Autism Detection in Early Childhood (ADEC), a Rapid Interactive Screening Test for Autism in Toddlers (RITA-T) e o Protocolo de Avaliação Comportamental para Crianças com Suspeita de TEA – versão revisada – Não Verbal (PROTEA-R-NV)(Steigleder, Bosa e Sbicigo, 2018)9.
Desses, apenas a GARS, a CARS, a RITA-T e o PROTEA-R-NV estão disponíveis para uso clínico no nosso meio. O PROTEA-R foi validado e comparado ao instrumento Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT), que é um instrumento de triagem do TEA, e apresentou correlação forte positiva entre o escore de risco do M-CHAT, ou seja, apresentou boa sensibilidade frente crianças autistas. Este instrumento é recomendado para investigar o autismo entre crianças de 24 a 60 meses de idade. Recomenda-se a capacitação que é realizada em forma de curso online ou presencial (Steigleder, Bosa e Sbicigo, 2018)9.
Nos casos em que a criança é identificada como em risco para TEA (triagem nível 1) e o risco para TEA é confirmado (triagem nível 2), deve-se encaminhar para o processo de investigação diagnóstica. Os instrumentos, nessa etapa, são utilizados para confirmar ou descartar o transtorno - contudo, considerando que esses instrumentos devem fazer parte de uma abordagem mais ampla com anamnese, exame físico e a triagem. Para a avaliação de crianças com suspeita de TEA, há as escalas Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS-2) e a Escala LABIRINTO (Pacífico et al, 2019; Pondé et al, 2021)10, 11.
A ADOS-2 é reconhecida, internacionalmente, como a escala padrão-ouro para a avaliação diagnóstica do autismo junto a crianças entre 12 meses até adultos, sejam verbais ou não-verbais. A aplicação da escala exige certificação, ou seja, o profissional deve assistir às aulas, realizar exercícios propostos e a avaliação (caso seja aprovado/a, pode aplicar o instrumento). Entretanto, alguns entraves dificultam o seu uso, como o fato de ter sido apenas traduzida, mas não adaptada e validada clinicamente para a língua portuguesa e cultura brasileira, além de não haver o curso oficial de certificação no Brasil e o preço alto dos protocolos e do kit de brinquedos recomendados para uso durante a consulta9.
A escala LABIRINTO, por sua vez, são instrumentos brasileiros, também de caráter interdisciplinar e que devem ser aplicados por profissionais de saúde. 10, 11.
A Escala Labirinto também é um instrumento brasileiro, elaborado pelo Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em Autismo (LABIRINTO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é interdisciplinar, também exige certificação e traz a recomendação de um kit de brinquedos para serem utilizados durante a consulta. A Labirinto é uma escala de investigação diagnóstica que, ao ser comparada à escala Childhood Autism Rating Scale (CARS), no estudo de validação clínica, demonstrou alta sensibilidade e especificidade (100% em ambos) sendo, portanto, um instrumento de alta aplicabilidade clínica11.
A Escala LABIRINTO pode ser utilizada com crianças de 2 anos a 4 anos e 11 meses, embora, versões para outras faixas etárias estejam em processo de validação e devem ser lançadas no futuro. Por ser brasileira, prescinde do processo de tradução, adaptação e validação, além de recomendar uma lista de brinquedos acessíveis11. A LABIRINTO é uma escala que exige certificação através de curso, no qual o candidato deve realizar participar das aulas, realizar exercícios e uma avaliação (caso seja aprovado, pode aplicar o instrumento).
Implicações para a prática do enfermeiro
O processo de avaliação do TEA acontece pelo uso de instrumentos interdisciplinares e abrange os serviços de atenção primária e secundária à saúde. No nosso país, os enfermeiros atuam nesses dois níveis de atenção, no entanto, observa-se, empiricamente, pouca visibilidade desses profissionais nas discussões sobre avaliação e intervenção à criança com TEA à despeito de outras categorias profissionais e ao contrário do que se observa em outros países. Nesse sentido, a realização da triagem e da investigação diagnóstica para o TEA pode se configurar como espaços importantes de atuação dos enfermeiros nos serviços públicos, privados ou de forma autônoma podendo ser balizados por instrumentos clínicos já consolidados aliados à avaliação mais global da criança (anamnese e exame físico e exame de estado mental).
Limitações do estudo e contribuições para a prática
Há poucos/as estudos sobre a atuação de enfermeiros/as na avaliação (e intervenção) à criança com autismo e há poucos instrumentos dentro do campo da profissão voltados a este fim. Disto pode resultar a pouca identificação desses profissionais com esse tema, a despeito de serem profissionais presentes em todos os níveis de atenção à saúde das crianças: desde a atenção primária à saúde até os serviços terciários/especializados. A inserção de mais enfermeiros/as nessa área de atuação, no setor público, privado ou autônomo, resultaria na diminuição das filas por atendimento para crianças e suas famílias, além da abertura de campo de atuação profissional.
Considerações Finais
Devido ao aumento da prevalência atual de autismo, nota-se, empiricamente, que as cidades lidam com filas de crianças à espera de avaliação para autismo, ou seja, crianças que precisam realizar a triagem e a investigação diagnóstica. Os enfermeiros poderiam atuar nesses dois âmbitos conjugando um processo de anamnese ao uso de instrumentos de triagem e de investigação diagnóstica. No âmbito da rede pública, essa atuação fortaleceria a linha de cuidado às crianças com autismo dando maior resolutividade ao SUS12.
Os instrumentos de triagem podem ser de uso livre enquanto outras podem exigir capacitação ou certificação. Os instrumentos de investigação diagnóstica exigem a realização de cursos de capacitação e/ou certificação. As vantagens de os enfermeiros de se apropriarem desses instrumentos seriam: ampliar as possibilidades de desenvolvimento profissional nos âmbitos público e privado, contribuir para a diminuição das filas de crianças que aguardam avaliação diagnóstica para autismo e qualificar o discurso da profissão em relação ao desenvolvimento infantil (típico ou atípico), ao brincar e à brincadeira, ao autismo2, 9.
Assim, poderiam ampliar as possibilidades dentro da área de desenvolvimento infantil tanto no serviço público quanto no privado atuando de forma especializada, prestando consultoria, na formação de outros enfermeiros ou atuando de forma autônoma.
REFERÊNCIAS
1. Maia EBS, La Banca RO, Nascimento LC, Schultz LF, de Carvalho Furtado MC, Sulino MC, de Lima RAG. Nurses perspectives on acquiring play-based competence through an online course: A focus group study in Brazil. J Pediatric Nursing. 2020. doi:10.1016/j.pedn.2020.10.008
2. Associação Brasileira de Psicologia e Medicina do Comportamento (ABPMC). Critérios para acreditação específica de prestadores de serviços em Análise do Comportamento Aplicada (ABA) ao TEA/desenvolvimento atípico da ABPMC; 2020. 32p.
3. Li Q, Li Y, Liu B et al. Prevalence of Autism Spectrum Disorder Among Children and Adolescents in the United States From 2019 to 2020. JAMA Pediatr. 2022;176(9):943-45. doi:10.1001/jamapediatrics.2022.1846.
4. Maenner MJ, Warren Z, Williams AR. Prevalence and Characteristics of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years: Autism and Developmental Disabilities. Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2020. MMWR Surveill Summ. 2023;72(2):20p.
5. Siquara GM. Dados psicométricos e interpretação da pontuação na Escala LABIRINTO. In:Pondé MP, Wanderley DB, Siquara GM. Manual LABIRINTO para diagnóstico de autismo e sintomas associados. Salvador; 2022. p. 374-88.
6. Losapio MF. Instrumentos de triagem e avaliação para TEA: M-CHAT e ABC. In: Pondé MP, Wanderley DB, Siquara GM. Manual LABIRINTO para diagnóstico de autismo e sintomas associados. Salvador; 2022. p. 261-304.
7. Johnson CP, Myers SM, Lipkin PH, Cartwright JD, Desch LW, Duby JC, et al. Identification and evaluation of children with autism spectrum disorders. Pediatrics. 2007;120:1183–215.
8. Choueiri R, Wagner S. A New Interactive Screening Test for Autism Spectrum Disorders in Toddlers. 2015;167(2):460-6.
9. Steigleder BG, Bosa CA, Sbicigo JB. Sinais de Alerta para Transtorno do Espectro Autista: Evidências de Validade do PROTEA-R-NV. Avaliação Psicológica. 2021, 20(3):331-40.
10. Pacífico MC, de Paula CS, Namur VS, Lowenthal R, Bosa CA, Teixeira MCTV. Preliminary evidence of the validity process of the Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS): translation, cross-cultural adaptation and semantic equivalence of the Brazilian Portuguese version. Trends Psychiatry Psychother. 2019;41(3):218-26. http://dx.doi.org/10.1590/2237-6089-2018-0063.
11. Pondé MP, Wanderley DB, Menezes LD, Gomes FL, Siquara GM. A validation study of the LABIRINTO scale for the evaluation of autism spectrum disorder in children aged 2 to 4 years. Trends Psychiatry Psychother. 2021;43(4):320-28. http://dx.doi.org/10.47626/2237-6089-2020-0141
12. Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (BR). Aplicação de escala de avaliação CARS e metodologia ABA em pessoa com Transtorno do Espectro Autista por enfermeiro. Parecer COREN-SP Nº 023/2020.
Critérios de autoria (contribuições dos autores)
1. contribui substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo: Joseph Dimas de Oliveira
2. na obtenção, na análise e/ou interpretação dos dados: Joseph Dimas de Oliveira
3. assim como na redação e/ou revisão crítica e aprovação final da versão publicada: Joseph Dimas de Oliveira
Declaração de conflito de interesses
“Nada a declarar”.
Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519