ARTIGO ORIGINAL

 

A MORTE NO CONTEXTO CULTURALMENTE MODIFICADO PELA COVID-19 – IMPACTOS E DESAFIOS DO CUIDADO À FAMÍLIA

 

DEATH IN THE CONTEXT CULTURALLY MODIFIED BY COVID-19 – IMPACTS AND CHALLENGES OF FAMILY CARE

 

MUERTE EN EL CONTEXTO CULTURALMENTE MODIFICADO POR EL COVID-19 – IMPACTOS Y DESAFÍOS DEL CUIDADO FAMILIAR

 

https://doi.org/10.31011/reaid-2024-v.98-n.4-art.2187

 


1Emanuelle Caires Dias Araújo Nunes

2Isabella Navarro Silva

3Juliana Xavier Pinheiro da Cunha

 

1Enfermeira, professora Adjunto da Universidade Federal da Bahia, Campus Anísio Teixeira, Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-0226-3619

 

2Enfermeira. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0001-5967-5051

 

3Enfermeira, professora assistente da Universidade Federal da Bahia, Campus Anísio Teixeira, Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Doutora em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://orcid.org/0000-0002-3752-206X

 

 

Autor correspondente

Juliana Xavier Pinheiro da Cunha

Avenida Laura Nunes, n. 455, Vitória da Conquista, BA. Brasil. CEP: 45026-100. Telefone: +55 77-991294475. E-mail: julianaxcunha@gmail.com

 

Submissão: 22-02-2024

Aprovado: 17-11-2024

 

RESUMO

Introdução: O isolamento social devido a pandemia pela COVID-19, ditou um novo padrão de convivência e comunicação, responsáveis por novos comportamentos culturais de relacionamento humano pessoal, social, sendo mais desafiador para às famílias de vítimas fatais. Objetivo. Conhecer os impactos e desafios de cuidado à família na experiência da morte culturalmente modificada pela COVID-19. Método. Estudo qualitativo fundamentado no Cuidado Transcultural de Leininger. Os participantes foram familiares de vítimas fatais da COVID-19, recrutados pela técnica snowball. A coleta se desenvolveu entre maio e agosto de 2022 através de entrevistas narrativas, submetidas à análise temática de conteúdo com suporte do software WebQDA. Resultados. Identificaram impactos da morte por COVID-19 na experiência da família: o isolamento pessoal, familiar, social e da equipe; a morte solitária; os rituais violados e o luto complicado. Além de apontarem para o desafio da acessibilidade e acolhimento empático no cuidado dos profissionais de saúde. Conclusão. A restritiva cultura imposta pela COVID-19 compromete o cuidado humanizado, de modo que, os enfermeiros devem ser encorajados a criar estratégias assistenciais empáticas que considerem as necessidades culturais modificadas pela pandemia. A enfermagem pode fazer a diferença na experiência angustiante deflagrada pelo novo coronavírus através da reinvenção profissional, conduzida pela via do cuidado transcultural, no direcionamento de transpor o distanciamento, com segurança, mas também com diálogo, proximidade, vínculo e flexibilidade no acesso familiar presencial ou virtual.

Palavras-chave: COVID-19; Empatia; Enfermagem; Família; Morte.

 

ABSTRACT

Introduction: Social isolation due to the COVID-19 pandemic dictated a new pattern of coexistence and communication, responsible for new cultural behaviors of personal and social human relationships, being more challenging for families of fatal victims.Objective. Understand the impacts and challenges of family care in the context of culturally modified by COVID-19. Method. Qualitative study based on Leininger's Transcultural Care. The participants were family members of COVID-19 fatal victims, recruited using the snowball technique. The collection took place between may and august 2022 through narrative interviews, submitted to thematic content analysis with support from the WebQDA software. Results. They identified impacts of death from COVID-19 on the family's experience: personal, family, social and team isolation; lonely death; the violated rituals and complicated mourning. In addition to pointing out the challenge of accessibility and empathetic reception in the care of health professionals. Conclusions. The restrictive culture imposed by COVID-19 compromises humanized care, so nurses must be encouraged to create empathetic care strategies that consider the cultural needs modified by the pandemic. Nursing can make a difference in the distressing experience triggered by the new coronavirus through professional reinvention, led by transcultural care, in order to overcome distance, safely, but also with dialogue, proximity, bonding and flexibility in face-to-face family access or virtual.

Keywords: COVID-19; Empathy; Nursing; Family; Death.

 

RESUMEN

Introducción: El aislamiento social por la pandemia de COVID-19 dictó un nuevo patrón de convivencia y comunicación, responsable de nuevos comportamientos culturales de relaciones humanas personales y sociales, siendo más desafiante para los familiares de víctimas fatales.Objetivo. Comprender los impactos y desafíos del cuidado familiar en el contexto de muerte culturalmente modificada por COVID-19. Método. Estudio cualitativo basado en el Cuidado Transcultural de Leininger. Los participantes eran familiares de víctimas mortales de COVID-19, reclutados mediante la técnica de bola de nieve. La recolección se realizó entre mayo y agosto de 2022 através de entrevistas narrativas, sometidas a análisis de contenido temático con apoyo del software WebQDA. Resultados. Identificaron los impactos de la muerte por COVID-19 en la experiencia de la familia: aislamiento personal, familiar, social y de equipo; muerte solitaria; los rituales violados y el duelo complicado. Además de señalar el desafío de la accesibilidad y la acogida empática en la atención de los profesionales de la salud. Conclusiones. La cultura restrictiva impuesta por la COVID-19 compromete el cuidado humanizado, por lo que se debe alentar a los enfermeros a crear estrategias de cuidado empático que consideren las necesidades culturales modificadas por la pandemia. La enfermería puede marcar la diferencia en la angustiosa experiencia desencadenada por el nuevo coronavirus a través de la reinvención profesional, liderada por el cuidado transcultural, para superar la distancia, con seguridad, pero también con diálogo, proximidad, vinculación y flexibilidad en el acceso familiar cara a cara o virtual.​

Palabras clave: COVID-19; Empatía; Enfermería Familia; Muerte.

 

 

INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 impactou significativamente os modos de vida e de morte e de comportamento humano. O isolamento social ditou, invariavelmente, um novo padrão de convivência e comunicação, responsáveis por empreender novos comportamentos culturais de relacionamento humano pessoal, social e, especialmente, no contexto de cuidados à saúde, afetando desde o espaço familiar até o hospitalar, ou seja, a sociedade como um todo. Diante disso, este estudo centra a sua ênfase nos impactos e desafios vivenciados pelas famílias de vítimas fatais da COVID-19, no direcionamento de reinventar o cuidado de enfermagem frente a morte no cenário culturalmente modificado pela pandemia.

Para isso, utilizaremos como referencial teórico a Teoria da Diversidade e Universalidade Cultural de Leininger. Na perspectiva da autora, a cultura é compreendida como o conjunto de normas, saberes, hábitos ou crenças que regem os comportamentos assumidos como um padrão por determinado grupo social. Nesse sentido, a autora defende que a Enfermagem direcione suas ações de forma congruente aos valores culturais e estilo de vida de cada família. O Cuidado Transcultural, então, é aquele que considera a conjuntura sociocultural da pessoa, agregando iniciativas criativas, individualizadas e humanizadas que sejam significativas para ela (1).

Neste caso, o cenário que demanda adaptação é definido uma perspectiva cultural de autoproteção contra um vírus potencialmente fatal. Trata-se de uma intensa e brusca adesão populacional a um padrão de isolamento social inimaginável previamente, alimentado por forte incerteza e medo, sobrepostos como uma cascata negativa sobre a saúde mental familiar.  A família, afetada pela doença e morte, neste contexto, experimenta uma espécie de convulsão nos seus relacionamentos, sobrecarregados pela imperativa necessidade de negociar rituais e rotinas, ao mesmo tempo em que precisa administrar a insegurança emocional e a redução de fontes de resiliência (2).

Por essa condição, o cuidado centrado na família é ainda mais importante em uma ocasião de pandemia. Esse enfoque demanda dos profissionais de saúde uma adaptação ágil de práticas e abordagens direcionadas às famílias que experienciam o adoecimento e internamento por COVID-19. Ressalta-se como oportuno, o uso de estratégias de comunicação, mediadas pelo telefone ou escritas, capazes de garantir o engajamento das famílias, apesar do distanciamento físico. O acesso gratuito à internet é considerado como um benefício neste processo, além do envio e entrega de mensagens contendo vídeos, áudios ou escrita entre o paciente e sua família (3).

Trata-se de uma situação ímpar que demanda dos profissionais de saúde flexibilidade e competência para alinharem sua assistência às restrições vigentes, sem descontinuar a natureza acolhedora e empática do seu cuidado. Sugere-se, neste sentido, atitudes profissionais solidárias ao fortalecimento das relações sócio afetivas familiares, incluindo o apoio aos valores espirituais como recursos essencialmente oportunos para um enfrentamento menos hostil da pandemia, sobretudo entre as famílias afetadas pela forma grave da COVID-19 ou pela perda de um ente querido vítima da doença (2-5).

Acerca disto, observa-se um importante vazio assistencial à família que enfrenta o processo conhecido como final de vida. Apesar de estar previsto como componente essencial dos cuidados paliativos integrais, essa assistência persiste como uma lacuna, ainda mais evidente durante a pandemia causada pelo novo coronavírus. Com o crescente número de mortes causadas pelo agente, eleva-se essa necessidade ao senso de urgência, no sentido de angariar o máximo de conhecimento sobre como cuidar mais assertivamente das famílias que enfrentam a morte decorrente da COVID-19 (6).

Portanto, entende-se a relevância de investir em pesquisas que corroborem com evidências construtivas ao desenvolvimento de um cuidado que faça mais sentido frente às demandas das famílias que passam pela experiência do luto no cenário atual, contexto de grandes mudanças culturais, sobretudo no tangente a interação social. Nesse sentido, este estudo foi norteado pela pergunta: quais os impactos e desafios de cuidado à família no contexto da morte culturalmente modificada pela COVID-19? E teve como objetivo: conhecer os impactos e desafios de cuidado à família na experiência da morte culturalmente modificada pela COVID-19.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória ancorada no referencial teórico do Cuidado Transcultural de Leininger (1). Ela foi desenvolvida em consonância à resolução 466 de 12 de dezembro de 2012, aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo sob o parecer n. 5.381.347/2022. Desta forma, a anuência dos participantes foi firmada mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE. O cenário consistiu na cidade de Vitória da Conquista, principal município da região sudoeste da Bahia.  Os participantes foram familiares de vítimas fatais da COVID-19, recrutados por snowball 7, a partir da rede social de referência das pesquisadoras. Os critérios de inclusão foram: ser familiar de uma vítima fatal da COVID-19 e ter um convívio/relacionamento próximo com a vítima, independente do grau de parentesco; e de exclusão foi: ser menor de 18 anos. Tais critérios foram observados através da autodeclaração dos participantes e visaram assegurar que os entrevistados estivessem diretamente envolvidos na experiência de hospitalização, perda, luto e funeral de seu ente querido. Assim, 12 participantes foram entrevistados mediante anuência ao TCLE no período de Maio a Agosto de 2022, quando já tinha pelo menos 1 ano de perda do ente querido. Eles foram delimitados pela saturação teórica dos dados (analisados concomitantemente a coleta) e tiveram o seu anonimato preservado através de codinomes. Às famílias, representadas no genograma, foram dados nomes fictícios de pássaros, os quais foram utilizados como sobrenome do respectivo familiar entrevistado.

Os participantes foram contactados pelo WhatsApp, informado pela pessoa da rede de referência que o indicou. Neste primeiro momento, o pesquisador principal se apresentou e também descreveu a pesquisa, fazendo o convite para a entrevista. No total foi feito contato/convite para 17 familiares, dos quais 05 recusaram de imediato, dada a sua sensibilidade emocional em relatar sobre a perda. Os anuentes firmaram seu aceite mediante TCLE e foram entrevistados de modo presencial (08) ou por videochamada (04), segundo a sua preferência. A coleta foi desenvolvida por 02 pesquisadoras do gênero feminino experientes na condução das técnicas: genograma familiar e entrevista narrativa. Independente da modalidade de coleta, presencial ou online, as entrevistas foram realizadas individualmente, com gravação de aúdio para posterior transcrição e análise. No caso das entrevistas presenciais foi adotado o uso de máscara cirúrgica pelo pesquisador e mantido distanciamento recomendado. O estímulo para narração foi: me conte sobre a sua experiência de perda do seu ente querido vítima da COVID-19. O genograma foi realizado conjuntamente com o familiar participante de modo parcial, dadas as limitações de informações desconhecidas pelo mesmo. Ele consiste em um instrumento de avaliação familiar em forma de diagrama, que apresenta a estrutura interna da família, ilustrando as gerações, condições de saúde, entre outras informações básicas. Neste estudo, a ênfase foi situar o entrevistado e a vítima de COVID-19 no contexto de sua família, agregando o vínculo relacional entre ambos, através do símbolos de vínculo previstos na Psicofigura de Mitchell (8).

A análise dos dados foi realizada sob as lentes do referencial teórico de Leininger e seguiu a técnica temática de conteúdo, a qual, se desdobrou em três momentos: pré-análise, que consistiu da leitura flutuante, constituição do corpus e reformulação de hipóteses e objetivos; exploração do material, operação classificatória que visou alcançar a compreensão do texto no direcionamento de categoriais; e, tratamento dos resultados interpretados que envolveu a organização das informações obtidas(9). Este processo foi apoiado pelo software WebQDA no segundo e terceiro momento, conferindo praticidade e segurança a partir da codificação digital e das possibilidades diferenciadas de visualização e organização dos dados.

 

RESULTADOS

  Os participantes, 12 familiares de vítimas fatais da COVID-19, seguem apresentados nas Figura 01, Figura 02 e Figura 03 (genograma familiar, cuja legenda está na Figura 04). Este instrumento foi adaptado para contextualizar o entrevistado em relação ao parente vitimado, com ênfase no grau de parentesco entre eles, idade de ambos, data da morte e presença de comorbidades da vítima (Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e Diabetes Mellitus (DM), entre outras) e projeção do tipo de vínculo que possuíam entre si, baseado na Psicofigura de Mitchell (8).

Em sua maioria, os entrevistados apresentaram: idade entre 35 a 45 anos (06); gênero feminino (10); enfermagem como profissão (04); parentesco de filho(a) com a vítima fatal da COVID-19 (06); vínculo forte com o ente querido falecido (12); escolha pela entrevista presencial (08), com uma média aproximada de 57min. 

Os resultados agruparam 05 categorias, 03 referentes aos impactos da morte por COVID-19 (eixo A): morte solitária; rituais violados e luto complexo; e 02 referentes aos desafios do cuidado (eixo B): acessibilidade familiar e empatia profissional.


 

Figura 01 - Genograma familiar: Faisão-dourado; Andorinha; Pássaro Azul e Quebra-Nozes.

Fonte: Elaboração Própria

 

 

Figura 02 - Genograma familiar: Beija-Flor; Garibaldi; Sabiá e Rouxinol.

Fonte: Elaboração Própria

 

Figura 03 - Genograma familiar: Canário; Uirapuru e Bem-te-vi.

Fonte: Elaboração Própria

 

Figura 04 - Legenda referente ao genograma e ecomapa simplificados

Fonte: Elaboração Própria

 

 


Eixo A: O impacto da morte por COVID-19 na experiência da família

CATEGORIA 1: Morte solitária

Subcategoria 1a: Isolamento familiar vendo a porta de acesso se fechar pra dentro da UTI

Não foi a morte em si não. Nós já tínhamos perdido ele antes de receber a notícia [...] ele já tinha sido tirado da gente [...] desde aquele dia que ele foi pra UTI fechou-se uma porta, a gente não pôde mais ver [...] aquela coisa que você sabe que é necessário para sobrevivência “eu estou aqui contigo, a gente está te esperando aqui fora, menino teu filho está aqui, a gente te ama”, ouvir um louvor cantado, uma oração [...] naquele momento ali não tem [...]  só aquele silêncio total, todo mundo entubado, só houve tum tum tum, você pensa “vou ficar nesse tum tum tum para que? já morri já” (Paula Sabiá – Morte do ente querido em: 22/06/2020).

 

[...] vendo a família eu acho que talvez ele teria vontade de voltar, não vendo ninguém e estando naquele ambiente frio, talvez, ele tenha se entregado mais fácil [...] é muito frio uma ligação só por dia, você fica 24h, 26h esperando o boletim, é muito difícil e doloroso (Joyce Dourado – Morte do ente querido em: 20/07/2020).

 

O COVID tirou muita coisa. Acho que foi uma doença que só tem dimensão quem passou por ela ou quem teve um familiar na situação [...] porque assim, só de você ser tirado de ver quem você ama e de participar do cuidado, isso para mim já é uma morte, um processo muito doloroso (Rosana Garibaldi – Morte do ente querido em: 08/07/2021).

 

Subcategoria 1b: Isolamento da pessoa querida - sabendo que ele morreu sozinho

[...] uma morte solitária, e isso é doloroso, saber que a pessoa estava sozinha, é diferente de alguém que tá com câncer, nas últimas e tem o familiar ali do seu lado, segurando na sua mão... Quem morre de COVID não tem o direito de ter isso, sabe? Você não tem o direito de se despedir, não tem direito a ver, a falar, a tocar, a estar junto na hora que vai morrer, você perde esse direito, esse direito é arrancado de você (Camila Canário – Morte do ente querido em 06/01/2021).

 

Meu pai morreu sozinho, abandonado dentro de um hospital [...] Gente do céu, isso é o cúmulo! Você ter um parente desse jeito e você não poder visitar, [...] meu pai morreu ali achando que ele estava abandonado, deve ter pensado: “cadê meus parentes? Sumiu! (Rafaela Andorinha – Morte do ente querido em: 20/02/2021).

 

Subcategoria 1c: Isolamento da equipe de saúde - esbarrando na frieza das comunicações multiprofissionais

 [...] eu falei com a médica “tem tantos dias que meu pai tá aí... Deixa a gente, pelo menos uma vez por semana, ver ele”. Ela respondeu assim “acabou de chegar ontem [...] três pessoas que tentaram suicídio e tem um que não passa 5 minutos, vai morrer agora [...] aquela senhora lá na porta é a mãe dele e ela quer ir lá ver ele e eu não deixei e nem vou deixar, imagina você” [...]. Eu achei de uma frieza tão grande! Cadê o juramento? Você chegar com tanta frieza, tanta frieza e falar uma coisa daquela (Rafaela Andorinha – Morte do ente querido em: 20/02/2021).

 

[...] acho até que os profissionais ficam meio frios, as vezes eles não pensam nessas questões, eles estão cansados [...], mas são coisas importantes, principalmente para os parentes que estão de fora (Max Quebra-nozes – Morte do ente querido em: 30/09/2020).

 

[...] as vezes o médico era um pouco mais agressivo, mais grosso, mais frio, [...] diziam que a gente tinha que se preparar para tudo. Então, eu acho que às vezes o fato de as pessoas não saberem muito bem lidar com o familiar torna a situação, para quem tá de fora, mais dolorosa (Camila Canário – Morte do ente querido em 06/01/2021).

 

Subcategoria 1d: Isolamento social – perdendo o calor humano, o abraço e a presença dos amigos

O COVID trouxe o medo, eu não vou porque eu tenho medo, eu não te abraço porque eu tenho medo [...] um cenário de medo que paralisou a gente [...] Eu poderia falar assim “eu quero ver se é ele mesmo”, vai, abre e se contamina, e seja a próxima a entrar na UTI, quem vai? Então assim, volta a história do […] o medo me impossibilitou de ir para o velório, de abrir, de pegar, de escolher (pausa longa). Você está vendo que esse negócio é meio doido, por mais que você ame, que você queira, você não faz. E agora eu volto a minha primeira fala, nós somos egoístas [...], primeiro é a gente, sofre, dói, mas ainda bem que não foi eu (Paula Sabiá – Morte do ente querido em: 22/06/2020).

 

Até a questão do velório [...] não tinha quase ninguém, só a gente mesmo e a família da esposa dele. [...] quando você perde alguém, você quer os seus perto de você e a gente percebeu que existe um medo, mesmo as pessoas falando que o caixão está aberto porque está autorizado, que não tem risco de se contaminar! [...] as pessoas sentem medo de ir (Camila Canário – Morte do ente querido em 06/01/2021).

 

[...] perdemos aquela liberdade de sair e de encontrar com as pessoas que a gente quer [...] é mesmo uma de mudança de convivência (Teodora Azul – Morte do ente querido em: 22/10/2020).

 

CATEGORIA 2: Rituais violados

Subcategoria 2a. Corpo não reconhecido – recebendo um caixão lacrado

Sai de lá dentro de um caixão, o último adeus não tem! [...] eu fiquei pensando “será que é ele mesmo? Quem me garante que era?” [...]a gente não escolhe roupa [...]não escolhe o jeito que vai colocar o cabelo [...]a gente nem sabe se, de fato, ele estava com os membros arrumadinhos, ou se jogaram dentro do caixão (pausa longa) [...] Meu primo saiu direto do hospital, passava pelas ruas da cidade e aí as pessoas se despediam da sua janela (Paula Sabiá – Morte do ente querido em: 22/06/2020).

 

[...] o pessoal disse que não tinha como ver e aí foi um desespero [...] já estavam lacrando o corpo [...] isso aí pra mim marcou muito [...] [...] não conseguir ver o corpo, eu acho isso muito, muito agressivo com a família (choro). Eu fiquei bem uns 15 dias na expectativa do hospital ligar e dizer: “olha nós erramos e sua mãe está aqui no hospital” (Max Quebra-nozes – Morte do ente querido em: 30/09/2020).

 

No momento que o médico me passou a informação eu perguntei se podia ver e ele falou não [...] isso é muito doloroso, sabe? [...]eu não vi, recebi um caixão lacrado e esse caixão lacrado era meu pai e pronto (Joyce Dourado – Morte do ente querido em: 20/07/2020).

 

Subcategoria 2b. Velório proibido e enterro restrito – perdendo a oportunidade de homenagear/honrar/processar a despedida

Foi muito complicado, porque a gente tá acostumado com o velório, despedir do corpo e ter a cerimônia, o culto fúnebre pela vida dela aqui na terra e minha avó não teve [...] foi muito, muito difícil ver ela sendo colocada no túmulo sem ninguém poder chegar perto [...] (Ana Quebra-nozes – Morte do ente querido em: 30/09/2020).

 

Teria que ter uma forma que você pudesse velar sem que você ficasse próximo da pessoa que morreu, e acho que a família tem que ter liberdade para dizer se ela quer ver ou não, porque a família não quer saber se morreu de COVID ou de outra doença contagiosa, numa hora dessa você quer ver a pessoa. [...] Você só pode retirar o corpo para levar para o cemitério [...] E na hora do enterro uma quantidade bem limitada de pessoas, uma situação bem difícil, um trauma que eu não acredito que a gente esqueça (Cíntia Beija-flor – Morte do ente querido em: 16/11/2020).

 

E no enterro nós tivemos um problema porque ele morreu em Brasília, a certidão de óbito foi feita endereçando o corpo aqui pra Bahia, só que um decreto municipal impediu de fazer o translado. Então nós tivemos que mover uma ação judicial [...] o corpo não estava preparado para ficar três dias, aí conseguimos uma câmara para colocá-lo, mas ao invés de refrigerar, esquentou o corpo, porque não funcionou. Foi um transtorno muito grande, um desespero, não tem sido fácil, dores que não cicatrizam (Enzo Uirapuru – Morte do ente querido em 04/11/2020).

 

CATEGORIA 3: Luto complexo

Subcategoria 3a. Luto antecipado – perdendo o outro em vida quando a voz se cala pela intubação

Antes de ir para a UTI, a gente se falou, ele ainda estava com o celular lá, aí ele falou pra mim “minha filha é chegado minha hora, eu não volto mais para casa”, [...] me deu algumas recomendações [...] disse para eu cuidar da pensão da minha madrasta, me entregou meus irmãos [...] e aí calou a voz, eu não tive mais contato, não o ouvi mais [...] (Joyce Dourado – Morte do ente querido em: 20/07/2020).

 

Entubou e aí, daquele momento em diante a gente sabia que as perdas estavam sendo cada dia mais dolorosas. Então, não foi no dia que faleceu, foi desde o primeiro dia de UTI, o quadro foi se agravando, foi perdendo isso e aquilo. Foi assim, dia após dia um luto, a gente vivendo, como se tivesse maturando aquele luto, todo dia era um pedacinho que ia (Paula Sabiá – Morte do ente querido em: 22/06/2020).

 

Ele ficou uns 8 dias internado, ele vinha bem, mas no dia que falou: vai ter que intubar, foi aquele baque! “se intubar não sai” (Maitê Bem-te-vi – Morte do ente querido em 31/05/2021).

 

Subcategoria 3b. Luto complicado – ficando louco em um ciclo de perda que não se fecha

O luto COVID para mim é complicado porque é como se o ciclo não fechasse [...] em muitos momentos eu me pego esperando meu pai chegar. [...]eu acho que a psicologia vai ter trabalho com o luto COVID, ninguém mais é o mesmo [...] ele tem tirado muito meu sono... Minha motivação, às vezes, não tenho vontade de levantar da cama, fico me perguntando “por que foi o meu pai?” [...] já várias vezes eu peguei o telefone pra ligar para o meu pai, aí eu penso que estou ficando louca [...]dois irmãos meus estão tomando antidepressivo para o enfrentamento e eu também preciso de ajuda (Joyce Dourado – Morte do ente querido em: 20/07/2020).

 

Eu não consegui fazer essa parte final, foi uma parte anulada para mim e fica parecendo que faltou algo para completar o ciclo. Eu sei que a gente tem que aceitar a morte, mas a gente tem o direito de assistir ela e esse direito me foi tirado [...] uma dor que não vai curar [...]. Uma situação que vem me destruindo [...] me sinto devastada... Não consigo ser mais a mesma pessoa! Pago um preço muito alto porque eu perdi alguém sem poder, ao menos, me despedir (choro), eu acho que isso é irreparável. Estou na terapia, mas está difícil viver com essa dor, com essa perda, com esse luto (Alicia Rouxinol – Morte do ente querido em: 27/02/2021).

 

Na hora que o corpo chegou eu não sei o que que aconteceu, eu dei uma crise [...] hoje eu te falo uma coisa “eu não acuso ninguém que comete suicídio como eu acusava antes, que tem depressão,[...] hoje eu te falo “uma pessoa é capaz de matar qualquer pessoa”, porque o cérebro da gente é muito frágil![...]Quando meu pai morreu eu ficava pensando “será que os bichos já estão comendo o corpo dele? Menina do céu, eu ficava tentando imaginar [...]é de pirar a cabeça isso [...]. Vai fazer um ano e meio, mas ainda é tão difícil, é tão difícil, a gente dá crise de choro ainda, a gente grita, tem dias que eu não tenho vontade de levantar da cama... (Rafaela Andorinha – Morte do ente querido em: 20/02/2021).

 

Eixo B: Desafios de cuidado à família enlutada no contexto culturalmente modificado pela COVID-19 durante o fim de vida do ente querido na UTI

CATEGORIA 4. Acessibilidade familiar

Subcategoria 4a. Permitir o acesso presencial da família ao ente querido

O que eu mais sentia falta no momento da internação, se eu pudesse escolher, seria ver meu pai ainda que fosse ali entubado ou de qualquer jeito, mais ver, poder tocar, e pra ele, ainda que entubado, eu acho que teria feito diferença para mim também,  para o meu emocional e psicológico (Camila Canário – Morte do ente querido em 06/01/2021).

 

Eu acho que deveria ter uma forma de se estudar pra frente pra gente ver, da família reconhecer o corpo. [...] as pessoas da saúde deveriam ter um sistema que poderia, não sei, uma urna com vidro, alguma coisa que você visse, naquele momento, [...] uma possibilidade de um sistema muito seguro para o familiar ver, conseguir ver o parente (Max Quebra-nozes – Morte do ente querido em: 30/09/2020).

 

Subcategoria 4b. Fazer videochamada para a família conversar e/ou ver o ente querido

Eu acredito que o contato com a família, uma ligação de vídeo, sabe? [...] mesmo que o paciente esteja entubado, mas a gente queria ver, a gente queria pelo menos olhar como ele estava, se estava inchado ou não, o semblante dele, mas, foi tudo muito frio [...] um profissional dentro de uma UTI fazendo essa ponte entre família e paciente eu acho que seria fantástico (Joyce Dourado – Morte do ente querido em: 20/07/2020).

 

Eu acho que precisa mesmo de um sistema de vídeo para o familiar acompanhar mais de perto (Max Quebra-nozes – Morte do ente querido em: 30/09/2020).

 

Tem tablets que vc vê né? Acompanha… Eu acho que se fosse algo assim do tipo, algum meio tecnológico que você pudesse acompanhar alguns momentos assim do paciente porque ele ficou lá e a gente sem notícias.[…] foi bastante complicado mesmo, né? Por quê a gente ficava pensando se tava bem, se não estava, se estava se alimentando, se tinha alguém lá o  tempo todo (Teodora Azul – Morte do ente querido em: 22/10/2020).

 

CATEGORIA 05: Empatia profissional

Subcategoria Única: Tratar a família com empatia durante a interação virtual e presencial

Quando meu pai foi entubado eu fui visitá-lo e tinha uma enfermeira [...] ela falou “eu vou entrar com você”, segurou na minha mão, disse que tinha perdido o pai e que sabia o que eu estava sentindo [...] me levou na beira do leito do meu pai me segurando, foi uma coisa que me marcou muito! [...] não adianta você ter o melhor médico se você não tiver uma boa equipe de enfermagem, porque ela que está à beira leito, ela que é o olho, a fala, a escuta, ela que é tudo, tem profissionais que marcam a vida da gente quando a gente está do outro lado, justamente por fazer essa diferença. Então a enfermagem é um diferencial, temos que valorizar (Rosana Garibaldi – Morte do ente querido em: 08/07/2021).

 

Eu recebi a notícia de um médico muito humano [...] ele me ligou e  perguntou se eu estava em um lugar que eu podia conversar, se eu estava bem, [...] falou “Deus escolhe as flores mais lindas do Jardim e hoje ele escolheu a sua avó para recolher [...]”. Achei muito gentil, até diminuiu o impacto [...] conseguiu amenizar um pouco [...]eu daria a sugestão para os profissionais terem essa empatia com a família e dar mais apoio emocional (Ana Quebra-nozes – Morte do ente querido em: 30/09/2020).

 

Eu acho que colocar pessoas mais capacitadas para lidar com familiares de COVID [...]. Talvez, o médico não seja a pessoa mais indicada. Eu acho que devia ter uma pessoa, um psicólogo, que pudesse falar com mais calma, mais empatia, mais paciência, mais amor. Que conseguisse compreender que tem um familiar desesperado ali (Camila Canário – Morte do ente querido em 06/01/2021).

 

DISCUSSÃO

A pandemia destacou de forma inédita a lacuna que persiste no âmbito dos cuidados de fim de vida. Ela mudou a maneira como nossa sociedade funciona, incluindo a forma como cuidamos dos doentes e enlutados. Algumas intervenções costumeiras, como as reuniões presenciais com pacientes e familiares, visitas presenciais e conversas à beira do leito foram substituídas por conversas remotas, isolamento e pela possibilidade real de que os pacientes morram sozinhos, separados de seus entes queridos. Da mesma forma, rituais que normalmente traziam conforto à família e oportunidades de acesso a apoio após a morte deixaram de ser possíveis, predispondo essas pessoas ao desenvolvimento de um luto complicado, caracterizado pelos sentimentos de perda, angústia, frustração, culpa e desespero (6 ).

Assim sendo, o maior impacto vivenciado pelas famílias que perderam entes queridos pela COVID-19 se relacionou a “desumanização” do cuidado profissional durante a pandemia. O uso de equipamentos de proteção, somado as rigorosas medidas de isolamento repercutiram diretamente na assistência, comprometendo o toque, a identificação, o diálogo, o vínculo e a interação calorosa entre enfermeiros e pacientes-familiares (4). Desta forma, criou-se um senso de urgência, do ponto de vista da saúde pública, no direcionamento do apoio e cuidado aos familiares de vítimas da COVID-19 (6).

O termo humanização, quando usado no contexto de cuidados, significa uma atitude profissional relacional, acolhedora e empática junto ao paciente e à sua família.  Assim, uma assistência humana é aquela que valoriza e dignifica o outro (10). Sua práxis nasce da ética, da moral e do sentido que a enfermagem adquire no âmbito pessoal de cada profissional. Essa ancoragem é melhor subsidiada pelo conhecimento e aplicabilidade das teorias de Enfermagem, que potencializam uma postura crítico-reflexiva, madura e adaptativa frente as diferenciadas demandas destes profissionais (11).

No contexto da COVID-19, a Teoria do Cuidado Transcultural é pertinente para somar adaptações e assertividade frente as restrições decorrentes da nova perspectiva cultural imposta pela pandemia. Nesta, são suprimidas perspectivas de mundo e valores culturais pelo engessamento de atitudes padronizadas previstas pelo isolamento social. Diante disso, as lentes transculturais da enfermagem podem corroborar com possibilidades de adaptação da assistência, de modo a respeitar as medidas controle da contaminação, mas, também garantir novas formas de demonstrar empatia e acolhimento ao paciente e a família (12).

A teoria de Leininger busca difundir uma compreensão individualizada do ser humano, capaz de mobilizar na enfermagem uma práxis adaptativa adequada às demandas modificadas por novas e/ou diferentes culturas. Deste modo, o cuidador tem como desafio o planejamento de ações de cuidado significativas para cada família dentro de uma lógica que incorpora necessidades de cuidado especificas aos valores culturais assumidos por esta em um dado momento (13). Em temos de COVID-19, este desafio foi marcado, sobretudo, pela necessidade de lidar com a morte dentro de novos e dolorosos padrões. As restrições comprometeram a experiência familiar de perda, por negar-lhe o direito a rituais fúnebres culturalmente importantes para eles.

Diante disso, a literatura sobre a COVID-19 já contribui com recomendações capazes de assegurar a humanização do cuidado de fim de vida no contexto pandêmico. Entre elas, estão as visitas virtuais para suporte emocional do paciente e da família; o acolhimento e auxílio do binômio durante o processo de morte; o diálogo favorável a minimização do luto complicado;(4,14) além da viabilização para identificação familiar do corpo (via celular)(15) e, por fim, o desenvolvimento de uma comunicação efetiva com a família, assegurando que o paciente não morreu sozinho e que ele foi bem cuidado (4,16).

Tais atitudes convergem com o conceito Hospice desenvolvido por Cicely Saunders. Sua filosofia está centrada na presença autêntica do profissional de saúde junto ao doente terminal e à sua família. Para ela, ambos estão imersos em uma experiência repleta de desolação, desamparo, vazio, sofrimento, solidão e dor. Por isso, essa presença transcende a realização de técnicas e procedimentos especializados, alcançando o sentido de, essencialmente, levar para aqueles indivíduos o calor humano do qual carecem naquele momento. Os cuidados de fim de vida implicam, então, na atitude empática de manter-se ao lado, mostrar que se importa, que é testemunha de todo o processo e que, por isso, representa um apoio seguro que acolhe, divide a dor e se compadece (17).

Neste sentido, o contexto pandêmico do novo coronavírus impõe a necessidade de intervenções de enfermagem que garantam um cuidado humanizado apesar de todo o protocolo de contenção do novo coronavírus. Implica, portanto, no manejo terapêutico transpessoal que possa garantir uma escuta aberta das preocupações, solidão, impotência ou medo; individualidade (chamar pelo nome); apoio psicológico; práticas de relaxamento; relacionamento, toque (segurar a mão do paciente ou familiar); sensibilidade no falar (uso de um tom de voz afetuoso e sereno); música; comunicação alternativa (desenhos); valorização de crenças; e, acolhimento das necessidades espirituais e religiosas, das crenças e valores sobre o sentido da vida (5).

Outras estratégias incluem o  diálogo por meio de videoconferência; a permissão da presença física do familiar, mesmo que limitada; a disponibilidade profissional para entrega de mensagens de texto ou áudio enviados pelas famílias, ainda que o paciente não seja capaz de se comunicar;  o envio de mensagens escritas, de áudio ou vídeo do paciente para seus familiares; o incentivo para que o doente registre suas memórias e sentimentos durante a internação; o apoio pastoral para oração conforme desejado (via videoconferência) e a promoção de um ambiente confortável e personalizado através de áudios, livros, músicas e/ou televisão (18). Estas formas de cuidar, em tempos de pandemia, aumentam a qualidade do cuidado na UTI e geram benefícios terapêuticos à família ao garantir um apoio informativo e emocional durante as visitas virtuais e/ou presenciais (19).

Na perspectiva de Leininger, essa adaptação criativa perpassa pela habilidade profissional de preservação, negociação e reestruturação do cuidado a partir do diálogo e compreensão do legado cultural de cada indivíduo, mais facilmente observado no contato com a família e seus valores. Logo, o modelo de cuidado transcultural mobiliza na enfermagem competências capazes de contribuir com um cuidado centrado na família, desenvolvido por profissionais que acolham o contexto da pessoa hospitalizada no direcionamento de uma assistência compartilhada culturalmente entre enfermeiro e família (20). Assim, essa visão presume um cuidado físico e psicoemocional, culturalmente congruente às necessidades de uma pessoa ou de um grupo em um dado contexto (13).

No cenário da pandemia, o uso de tecnologias, como o telefone celular, tablets, videoconferência, entre outros, permitiu aos familiares uma comunicação diferenciada com o paciente e a equipe e o acompanhamento virtual do ente querido, por meio da troca de informações e visualização deste. Tais possibilidades, certamente reverberam em maiores chances resiliência no momento da sua perda e luto, frequentemente complexo, neste contexto. Assim sendo, é encorajador ver como a inovação e criatividade de muitos enfermeiros estão fazendo a diferença no cuidado às famílias atingidas pela morte por COVID-19 (16).

Para isso, a enfermagem será mais assertiva e humana com o suporte transcultural, o qual requer, deste profissional, um contínuo aprendizado com suas experiências, o desenvolvimento de sua alteridade, competência social, cultural, pedagógica e comunicacional em contextos diversificados, tal como na pandemia do novo coronavírus. Esta perspectiva favorece uma assistência individualizada e holística baseada nas necessidades culturais de cada pessoa, suas crenças e costumes. Por isso, os enfermeiros devem estar sensíveis às necessidades modificadas por novos contextos e dispostos a constante assimilação e busca da educação permanente, a fim de serem criativos e adaptativos frente a demandas como esta da COVID-19 (21).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

  A experiência de famílias que perderam um ente querido por COVID-19 é repleta de frustrações, dores e incompletude. Seus relatos demonstram o quanto o luto, nesta circunstância, é complicado e, por vezes, insuportável. Entretanto, apesar dos novos comportamentos culturais impostos pela pandemia, este estudo endossou possibilidades de humanização protagonizadas por profissionais que fizeram a diferença na vida destes familiares com sua empatia, acolhimento, disposição e sensibilidade.

Portanto, reitera-se a pertinência do Cuidado Transcultural como subsídio para uma reorganização de rotinas assistenciais ao paciente-familiar no contexto da pandemia. Ajustes criativos e tecnológicos que não imputem riscos de contaminação, mas que preservem a o vínculo, a proximidade e a humanização junto a estes indivíduos tão vulneráveis e carentes da hospitalidade e compaixão dos enfermeiros.

A enfermagem pode fazer a diferença na experiência angustiante deflagrada pelo novo coronavírus, especialmente no contexto da morte. Para isso, encoraja-se um processo de reinvenção profissional, conduzido pela via do cuidado transcultural, no direcionamento de transpor o distanciamento, com segurança, mas também com diálogo, empatia, vínculo, disponibilidade e acessibilidade presencial ou virtual ao familiar.

As limitações deste estudo relacionam ao seu recorte metodológico, o que sugere o investimento em pesquisas que possam contribuir em desvelar o fenômeno sob outras lentes e através de outras técnicas.

 

REFERÊNCIAS

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4.               Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses' experiences during the COVID-19 pandemic: A qualitative study. Nurs Crit Care [Internet]. 2021 [cited 2022 Jul. 05]; 26(5):397-406. Available from: https://doi.org/10.1111/nicc.12589

 

5.               Paula PHA, Pinheiro PNC, Mondragón-Sánchez EJ, Costa MIF, Rodrigues IP, Dourado JVL. The dimensions of the human being and nursing care in the pandemic context of COVID-19. Esc. Anna. Nery [online] 2020 [cited 2022 Jul 10]; 24(spe):e20200321. Available from: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0321. doi:10.1590/2177-9465-EAN-2020-0321.

 

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Critérios de autoria (contribuições dos autores)

Emanuelle Caires Dias Araújo Nunes. 1. contribui substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; 2. na obtenção, na análise e/ou interpretação dos dados;

Isabella Navarro Silva. 1. contribui substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; 2. na obtenção, na análise e/ou interpretação dos dados;

Juliana Xavier Pinheiro da Cunha. 3. assim como na redação e/ou revisão crítica e aprovação final da versão publicada

Declaração de conflito de interesses

Nada a declarar.

Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519

Rev Enferm Atual In Derme 2024;98(4): e024423                 

 Atribuição CCBY