ARTIGO ORIGINAL
A PERCEPÇÃO DA ENFERMAGEM OBSTETRA ACERCA DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO COTIDIANO DA ASSISTÊNCIA MATERNA
OBSTETRIC NURSES' PERCEPTION OF OBSTETRIC VIOLENCE IN EVERYDAY MATERNAL CARE
PERCEPCIÓN DE LAS ENFERMERAS OBSTÉTRICAS DE LA VIOLENCIA OBSTÉTRICA EN LOS CUIDADOS MATERNOS COTIDIANOS
https://doi.org/10.31011/reaid-2024-v.98-n.4-art.2198
Elizabeth Pinheiro Araújo1
Diego Pereira Rodrigues2
Valdecyr Herdy Alves3
Andressa Tavares Parente4
Antonia Viviane Menezes Souza5
Tatiana do Socorro dos Santos Calandrini 6
Reginaldo Lemos Soares Ferreira7
Giovanna Rosario Soanno Marchiori8
1Enfermeira.
Residente em Enfermagem Obstétrica pela Universidade Federal do Pará. Belém/PA,
Brasil. E-mail: elizabetharaujo2803@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5826-8881
2Enfermeiro. Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará. Belém/PA, Brasil. E-mail: diego.pereira.rodrigues@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8383-7663
3Enfermeiro. Professor Titular da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense. Departamento Materno Infantil Psiquiátrico. Niterói/RJ, Brasil. E-mail: herdyalves@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8671-5063
4Enfermeira. Professora Adjunta da Universidade Federal do Pará. Belém/PA, Brasil. E-mail: andressaparente@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9364-4574
5Enfermeira. Prefeitura Municipal de Boa Vista. Boa Vista/RR, Brasil. E-mail: aviviane@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0009-0006-1076-5199
6Enfermeira. Mestre em Enfermagem. Professora Adjunta da Universidade Federal do Amapá. Macapá/AP, Brasil. E-mail: calandrinitatiana@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2807-2682
7Enfermeiro do Hospital Sofia Feldman. Belo Horizonte/MG, Brasil. E-mail: reginaldolsf@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2674-8813
8Enfermeira. Professora Adjunta da Universidade Federal de Roraima. Boa Vista/RR, Brasil. E-mail: giovannamarchiori.ufrr@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0498-5172
Autor Correspondente
Diego Pereira Rodrigues
Av. Dr. Freitas, 1228, ap. 402, BL. Albatroz, Condomínio Torres Dumont, Belém - PA. Brasil. CEP: 66087-810. Telefone: +55(91) 988244126. E-mail: diego.pereira.rodrigues@gmail.com
Submissão: 04-03-2024
Aprovado: 01-11-2024
RESUMO
Objetivo: compreender a percepção de enfermeiras obstétricas sobre a violência obstétrica no seu cotidiano no campo do parto e nascimento. Métodos: trata-se de um estudo descritivo e qualitativo, com 25 enfermeiros obstétricos da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstétricos e Neonatologistas secional Pará, mediante entrevista semiestruturada de setembro de 2020 a março de 2021, com a gravação e transcrição na íntegra e submissão à análise de conteúdo. Resultados: observou-se que a violência obstétrica ligada diretamente ao cuidado do profissional de saúde, que perpetua a prática com desrespeito, negligência e discriminação do ciclo gravídico-puerperal e a formação em saúde, constitui importante estratégia para transformação do ambiente de trabalho. Conclusão: a formação e o conhecimento científico-técnico sobre a violência obstétrica permitem a real ressignificação sobre a forma de cuidar na saúde materna.
Palavras-chave: Violência Obstétrica; Enfermagem Obstétrica; Serviços de Saúde Materno-Infantil; Educação em Saúde; Capacitação Profissional.
ABSTRACT
Objective: to understand obstetric nurses' perceptions of obstetric violence in their daily lives in the field of labor and birth. Methods: this is a descriptive and qualitative study with 25 obstetric nurses from the Brazilian Association of Obstetricians and Obstetric and Neonatology Nurses, Pará section, through semi-structured interviews from September 2020 to March 2021, which were recorded and transcribed in full and submitted to content analysis. Results: it was observed that obstetric violence directly linked to the care of health professionals, which perpetuates the practice with disrespect, negligence and discrimination in the pregnancy-puerperium cycle and health training, is an important strategy for transforming the work environment. Conclusion: training and scientific-technical knowledge about obstetric violence enable a real re-signification of the way maternal health is cared for.
Keywords: Obstetric Violence; Obstetric Nursing; Maternal-Child Health Services; Health Education; Professional Training.
RESUMEN
Objetivo: conocer la percepción de las enfermeras obstétricas sobre la violencia obstétrica en su cotidiano en el ámbito del trabajo de parto y parto. Método: se trata de un estudio descriptivo y cualitativo con 25 enfermeras obstétricas de la Asociación Brasileña de Obstetras y Enfermeras Obstétricas y Neonatales, sección Pará, a través de entrevistas semiestructuradas de septiembre de 2020 a marzo de 2021, con grabación y transcripción íntegra y sometimiento a análisis de contenido. Resultados: se observó que la violencia obstétrica está directamente vinculada a la atención de los profesionales de la salud, que perpetúan la práctica con la falta de respeto, negligencia y discriminación en el ciclo embarazo-puerperio, y la capacitación en salud es una estrategia importante para transformar el ambiente de trabajo. Conclusión: la capacitación y el conocimiento científico-técnico sobre la violencia obstétrica permiten una verdadera resignificación de la forma de atención a la salud materna.
Palabras clave: Violencia Obstétrica; Enfermería Obstétrica; Servicios de Salud Materno-Infantil; Educación en Salud; Capacitación Profesional.
INTRODUÇÃO
A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem denunciado a violência obstétrica no cotidiano da assistência às mulheres, conhecida internacionalmente como disrespect and abuse during childbirth(1) perpetuando com forma de violação aos direitos sexuais, reprodutivos e humanos, em dimensão global.
Fato que precisa ser priorizado e enfrentado por todos, seja por mulheres, homens, família, sociedade, profissionais e gestores de saúde, com o propósito de eliminação de qualquer forma de violência(2). O tema faz jus a uma maior sensibilidade para a saúde das mulheres, que têm vivenciado inúmeras situações de violência, seja no Brasil(1,3) seja no continente americano(4-5), em países europeus, como Suécia(6), Itália(7), Espanha(8), e outras localidades, como o continente asiático(9), repercutindo diretamente na assistência profissional de saúde, com situações de violência, perpassando a saúde física, moral, psicológica e sexual, acrescidas de discriminação, racismo e negligência.
Esse panorama da assistência obstétrica no cotidiano das maternidades pode ser observado em estudos(7,10-11), em que 78% das mulheres(7), 42%(10), 75,1%(11), respectivamente, sofreram violência no parto. A violência obstétrica constitui problema em nível de saúde pública global, além de desrespeito aos direitos sexuais, reprodutivos e humanos, à autonomia do poder de decisão sobre o próprio corpo e sexualidade(1-2,4-7,12) especialmente, na realização de intervenções desnecessárias.
Apesar das diminuições das intervenções com episiotomia nos partos vaginais, verificam-se, ainda, dados em que 26,34% das parturientes são submetidas a este procedimento, dos quais, 40,59% ocorrem sem o devido consentimento(13). O toque vaginal repetido e doloroso pode ser observado em até 70,9% das situações, sendo 58,9% não consentidos(14), enquanto a manobra de Kristeller em até 1,9%, contudo, sendo utilizada rotineiramente, mas sem a devida notificação de registro de práticas no prontuário da parturiente(15), além de outros procedimentos que se tornam formas invisíveis de violência(6,1), muitas vezes, aceitáveis por fazer parte de lógica intervencionista do processo de nascimento.
Por intermédio da OMS, o Ministério da Saúde (MS) brasileiro propõe a modificação desse cenário intervencionista, com a formulação de diretrizes assistenciais ao parto(1-3,12), constituída pela mobilização de mulheres, profissionais, gestores de saúde e pesquisadores. Essa transformação possibilita experiências positivas e ressignificação de práticas implementadas, sustentando o respeito, a autonomia e o protagonismo feminino, além da segurança e ciência como base da atuação(12). Ademais da ampliação das políticas públicas no campo da saúde reprodutiva que possibilitou, desde 2000, subsídios para o fornecimento de melhores cuidados perinatais, especialmente, com a estratégia Rede Cegonha, em 2011, e os Centros de Parto Normal, em 2015, com a atuação da enfermagem obstétrica (EO), tendo papel crucial para garantir essa transformação(12-13).
Apensar dessas transformações, a assistência obstétrica, ainda, é permeada pelo desrespeito e pela violência. Mesmo com a humanização como eixo central das políticas públicas, as maternidades carecem de tratamento digno e respeitoso. Desta forma, a EO surge como base da categoria para implementação de mudanças cotidianas na assistência. Estudo mostrou que a assistência obstétrica garante melhores resultados maternos, por ocasionar menos intervenção, maior segurança e qualidade assistencial, permitindo atenção mais integral da assistência, assim, possibilitando experiência exitosa(16).
Para nortear a discussão desta investigação, formulou-se a questão: quais as percepções das enfermeiras obstétricas em relação à violência obstétrica?
Dessa forma, subentende-se que as percepções da enfermagem obstétrica permitem que sejam criadas estratégias para maior segurança e qualidade da assistência à mulher no parto e nascimento. A atuação das EO deve ser destaque para eliminação da violência em qualquer fase do ciclo gravídico-puerperal, com conhecimento sobre as particularidades da violência obstétrica e possíveis repercussões para a saúde das mulheres(12). Espera-se que compreender esse evento proporcione assistência obstétrica mais respeitosa, em especial, aos direitos das mulheres para enfrentamento dos atos de violência no cotidiano obstétrico.
O estudo objetivou compreender a percepção de enfermeiras obstétricas sobre a violência obstétrica no seu cotidiano no campo do parto e nascimento.
MÉTODOS
Trata-se de estudo descritivo, com abordagem qualitativa. A pesquisa descritiva é estabelecida na descrição das características de determinada população ou fenômeno(17). Utilizou-se do instrumento Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)(18) para auxiliar os pesquisadores a relatar com transparência e qualidade as informações das pesquisas qualitativas.
O estudo foi realizado no período de setembro de 2020 a março de 2021 na Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstétricos e Neonatologistas, secional Pará (ABENFO-PA). A escolha deste cenário teve como justificativa o fato de ser a associação do público-alvo do estudo, viabilizando o acesso aos possíveis participantes.
Os participantes foram 25 enfermeiros obstétricos associados à ABENFO-PA e atuantes na assistência ao parto e nascimento. O pesquisador e a respectiva equipe não apresentam relação pessoal e profissional com a instituição envolvida, evitando, assim, qualquer conflito de interesse no estudo. O interesse se retratava apenas quanto ao problema do estudo, sendo o único momento de encontro durante a coleta de dados.
A seleção dos participantes ocorreu, primeiramente, mediante o contato fornecido pela ABENFO-PA, sendo realizado por meio do aplicativo WhatsApp®, que objetivou maior aproximação para prestação de esclarecimentos do estudo e da importância da contribuição de cada um; além do fornecimento de informações do objetivo, dos riscos e benefícios da pesquisa. Em seguida, procedeu-se ao convite e aplicaram-se os critérios de elegibilidade: 1) ser especialista em enfermagem obstétrica; 2) está associado à ABENFO-PA; 3) atuando em exercício profissional na assistência ao processo parturitivo. Com aqueles que atenderam a esses critérios, marcou-se a entrevista em localidade de preferência do participante. Acrescente-se que o critério de exclusão considerou aqueles com menos de seis meses de atuação na assistência, na especialidade, ou não ser associado.
O estudo recebeu o contato de 35 possíveis participantes, mas obteve o encerramento de coleta de dados, a partir da realização da saturação teórica, não tendo recusa de participação. A saturação teórica ocorre quando novos temas ou tipos de enunciados não são, de maneira consistente, acrescentados após novas entrevistas por suficiência de significados(19). Assim, o número de participantes não foi predeterminado, totalizando 25 enfermeiros obstétricos.
Realizou-se a entrevista semiestruturada com perguntas abertas e fechadas relacionadas ao perfil social, formação e profissional. Também, procederam-se às perguntas disparadoras sobre o tema: qual sua percepção sobre a violência obstétrica? Para você, como pode ser feito o enfrentamento da violência obstétrica?
Os dados foram coletados presencialmente em local reservado, somente com a participação do pesquisador e o entrevistado, conforme a preferência das participantes, geralmente, em ambiente de trabalho ou no espaço doméstico. As entrevistas foram realizadas em profundidade, em momento único, com o enfermeiro obstétrico, com duração média de 40 minutos, que permitiu a investigação das percepções da violência obstétrica.
As falas foram gravadas em aparelho digital, com autorização prévia dos participantes e, posteriormente, transcritas na íntegra, para suceder o processo de tratamento dos dados. A transcrição foi realizada após a leitura, em outro encontro, para possíveis alterações ou correções da fala, como preconiza a COREQ. A técnica de coleta de dados foi conduzida apenas pelo pesquisador principal, evitando condução diferenciada da entrevista, pois o modo de cada pesquisador poderia interferir no momento da coleta.
Aplicou-se a análise de conteúdo na modalidade temática(20). Os dados foram ordenados com a transcrição das entrevistas na íntegra. Realizaram-se a leitura flutuante e o agrupamento, submetendo-os à análise detalhada e exaustiva e confrontando com a literatura científica(20). Na sequência do plano, selecionaram-se as unidades de análise, surgindo, por meio da frequência (repetição de sentidos), a saber: violência, desrespeito, formas de violência, intervenções desnecessárias, negligência, negação dos direitos, violência no parto, violência de gênero, formação em saúde, mudança e ressignificação, educação permanente e aprimoramento. Por fim, na última fase do processo analítico, a identificação das unidades de significados possibilitou, na última etapa da análise, a categorização dos elementos construtivos e o reagrupamento dos sentidos, com base na categorização não apriorística(20).
O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, conforme o CAAE: 33627220.6.0000.0018 e o protocolo n.º 4.152.422/2020 como disposto na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) n.º 466/2012. Para preservar o princípio da resolução, os enfermeiros obstétricos participantes firmaram a participação voluntária, com realização da leitura, em que todos detinham totais condições física e psicológicas, e da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), condicionando-os à participação no estudo.
Quanto ao sigilo, ao anonimato e à confiabilidade, os depoentes foram identificados pela letra E de Entrevistado, seguida de algarismo numérico correspondente à sequência da realização das entrevistas (E1, E2, E3, ..., E25).
RESULTADOS
A categorização não apriorística possibilitou, com base nas respostas dos participantes, a construção das categorias: 1) A percepção de enfermeiras e enfermeiros obstétricos sobre violência obstétrica; 2) A formação da enfermagem obstétrica: subsídios para o enfrentamento da violência obstétrica.
Esses aspectos foram orientados pela apropriação da literatura científica e com base na política de humanização e nas diretrizes nacional sobre o parto normal.
A percepção de enfermeiras e enfermeiros obstétricos sobre violência obstétrica
A percepção dos entrevistados com relação à violência obstétrica expressou a prática profissional em todo o ciclo gravídico-puerperal, configurando-a em atitudes sustentadas pela violência na atenção ao pré-natal, parto, puerpério e abortamento:
A violência obstétrica, eu considero como toda e qualquer violência que acontece contra essa mulher no período gestacional, parto, pós-parto, e no abortamento. (E1).
Entendo a violência obstétrica como um ato que atravessa o desejo da mulher durante as suas experiências e vivências na sua vida reprodutiva, isso inclui: gestação, trabalho de parto, parto e pós-parto, ou seja, não se restringe apenas ao parto e nascimento. (E11)
A violência obstétrica se configura como relação direta no contexto do trabalho dos profissionais de saúde, possibilitando, muitas vezes, a discriminação, negligência da assistência e violência verbal com a mulher:
A violência obstétrica vai desde o processo de discriminação por estar gestante, pela quantidade de gestações que ela já teve, pela negligência no processo de abortamento [...] são falas que o profissional de saúde faz que intimida essa pessoa, naquele período mais vulnerável que ela se encontra, isso também vai acontecer no trabalho de parto, os xingamentos acontecem, as intimidações, as ameaças. (E5)
A violência obstétrica que acontece mais frequente hoje em dia ainda é a verbal, só porque a mulher já teve parto normal, achar que ela já sabe, eu já vi acontecer assim muito: Você já teve parto normal, então, você já sabe como é, por que tu estás gritando? [...] Você já sabe que dói, por que tu estás gritando? Esse tipo de frase realmente machuca a mulher. (E16)
A violência obstétrica apresenta inúmeras configurações e umas das nuances que se estende para além do componente da violência física, como também para o campo psicológico, sexual, institucional e estrutural. O processo de trabalho e a lógica assistencial desconfigurada da centralidade do cuidado para a mulher e família.
A violência, ela pode ser física, ela pode ser psicológica, ela pode ser verbal, com as frases que a gente observa que são feitas, tem, aí, também, a sexual eu acho que é um momento muito difícil de acontecer [...] mas, a física é um tapinha nas pernas, é um toque grosseiro [...] ainda há uma negligência, uma descriminação de condutas desnecessárias sendo feitas pelos profissionais [...] violência também institucional, não só pelos profissionais que acometem a mulher dessa violência, mas a estrutural também e a institucional, eu acho que talvez seja até pior, porque se um profissional acomete uma violência, muitas vezes, está relacionado à instituição. (E10)
A violência também é expressa nas percepções da EO, sugestivo do processo de trabalho dos profissionais de saúde, com as intervenções obstétricas, como episiotomia, manobra de Kristeller, toques excessivos, utilização do fórceps, uso de ocitócitos de rotina, com o intuito de acelerar o parto, sem observar a fisiologia da parturição, mas, unicamente, conforme a condição ideológica.
A própria violência física como as mutilações no caso da episiotomia, as suturas feitas com propósitos não de reparação, mas de uma nova vulva com determinado objetivo, então, tudo isso é considerado violência obstétrica. (E7)
A utilização da episiotomia, infelizmente, a gente ainda observa até o Kristeller, sendo feitos toques excessivos na parturiente, isso é uma violência obstétrica [...] ainda assim, o uso do fórceps, que é uma violência obstétrica e, no meu entendimento, a violência obstétrica também se dá no acelerar daquele trabalho de parto, com o uso de ocitócitos, infelizmente, ainda estão presentes essas rotinas. (E22)
A formação da enfermagem obstétrica: subsídios para o enfrentamento da violência obstétrica
Os cursos de aprimoramento promovidos por Universidades e com apoio do MS são instrumentos importantes de estratégias para garantir atenção mais qualificada com foco no cuidado compartilhado. O compartilhamento constitui espaço para o diálogo para reflexão do processo de trabalho nos serviços de saúde, com debate da violência obstétrica e respectivo enfrentamento.
Além da constante atualização, tanto de portarias como de cursos de aprimoramento, a gente deve ficar todo o tempo se aprimorando nas novas práticas, que sejam benéficas ao parto normal, a gente precisa também orientar outros profissionais [...] sinto muita carência desse aperfeiçoamento, dessas atualizações, eu acho que quando o profissional tem o conhecimento, busca o conhecimento, ele procura melhorar e aplicar o conhecimento à prática e discutir a violência obstétrica, essa é a arma para a real mudança. (E6)
Na base, na formação dos futuros profissionais que vão assistir a mulher durante o ciclo gravídico-puerperal, com práticas do cuidado obstétrico pautadas nas políticas públicas de saúde efetivamente e que tragam na centralidade do cuidado a mulher no processo reprodutivo [...] com isso, a discussão da violência obstétrica na maternidade, nos serviços de saúde potencializam mudanças drásticas e esse painel de violência. (E11)
A formação em saúde constitui estratégia para romper com os obstáculos quanto à assistência obstétrica permeada pela violência, com o intuito de assegurar a formação que garanta as melhores práticas e o relacionamento respeitoso à mulher. Os cursos de formação configuram importante iniciativa para enfrentamento da violência obstétrica. Desta forma, a ausência da Educação Permanente em Saúde (EPS) propicia a estagnação da práxis profissional, alinhando-se com a violência contra a mulher.
Principalmente, a falta da realização de cursos de aprimoramento, porque nós precisamos abranger as classes de modo geral, infelizmente, nem todos os profissionais estão engajados nas boas práticas, tanto os profissionais de enfermagem quanto profissionais médicos, a psicologia tem que estar envolvida, o serviço social, então, fatores sim de esclarecimento, na realização desses cursos para que a gente aumente o número de pessoas com a informação, para que seja evitada ou não mais praticada a violência obstétrica, nós temos que frisar o empoderamento da mulher, e ela é o autor principal, ela que é a protagonista do trabalho de parto. (E2)
DISCUSSÃO
A violência obstétrica está situada na cultura da obstetrícia, construída com base num cotidiano enraizado no modelo que preza pelo desrespeito da autonomia e expectativa das mulheres(16). Essa violência perpassa por todo ciclo de vida da saúde reprodutiva da mulher, como a apropriação de condutas violentas, desde uma violência que ocorre durante a consulta pré-natal, com desrespeito, discriminação, a não informação e ao despreparo do profissional de saúde em fornecer assistência de qualidade(22).
No âmbito do parto, acontece desde a negligência, o descuidado, a utilização de práticas contrárias às expectativas das mulheres e das recomendações da OMS e MS sobre a assistência obstétrica e as condutas pejorativas com base na raça, orientação sexual e condição socioeconômica(1,3-7,-8,10-16,21).
Além do âmbito da assistência às mulheres em situação de abortamento(21-22), com situações de ausência de acessibilidade, maus-tratos pelos profissionais de saúde, com discriminação e preconceito com as mulheres, seja violência velada, seja opressora contra a própria visão do profissional em realizar o aborto(22).
Desse modo, as percepções dos enfermeiros obstétricos traduzem o que a literatura científica retrata acerca do aspecto conceitual da violência obstétrica(1-,9-11,13,21-23), não se atendo apenas ao contexto do parto, mas a todo o ciclo da saúde reprodutiva feminina. A negligência(1-3), discriminação(4-6), violência física(1,3-5-8), psicológica(7), verbal(10,12,21), sexual(24), institucional(9) e estrutural(9) constituem as vertentes da violência obstétrica postuladas pelos EO.
Esse painel conceitual traz marco importante para mudança do processo de trabalho, com esclarecimento sobre o tema, de modo a possibilitar a identificação e o alerta para rupturas de condutas no cenário da saúde reprodutiva das mulheres, de prática profissional e da missão institucional dos serviços de saúde, que não afeta apenas o âmbito brasileiro, mas a esfera global da problemática(4-9,10-13, 21-22,24). Pois, as condutas oferecidas durante a assistência estão desalinhadas das bases de orientação, diálogo e respeito, utilizando práticas em desacordo com as diretrizes de práticas exitosas, como preconiza a OMS(25) e MS(26), produzindo, assim, violência velada do exercício do profissional de saúde.
Essa violência se baseia na utilização de inúmeras intervenções desnecessárias no corpo das mulheres, como episiotomia, utilização do fórceps, manobra de Kristeller, toques excessivos, uso de ocitócitos de rotina, voltados para a prática do profissional de saúde ancorado na própria convicção de atuação, especialmente, para o modelo intervencionista do parto(3,8,12,21-23). Essas condutas estão em desacordo com as recomendações da OMS(25) e MS(26), para uma experiência exitosa na assistência obstétrica, com foco na eliminação da violência obstétrica. Isso modifica a forma do processo de trabalho, quando ocorrem os sentidos de inibição de intervenções obstétricas para a prática profissional, transformando o ideal de cuidado das mulheres e as relações estabelecidas neste processo.
No entanto, para ocorrer mudança dessa realidade, faz-se necessário que gestores e profissionais de saúde lancem mão de importantes estratégias para reorganização da gestão do processo de cuidado nos serviços de saúde, ou seja, de iniciativas do MS, para o modelo colaborativo e interprofissional. A colaboração e o trabalho em equipe permitem melhores resultados, visando qualificar a assistência e o processo de trabalho, com foco nas evidências científicas, na incorporação de novas práticas, no alicerce da humanização e na garantia dos direitos sexuais, reprodutivos e humanos(12). Assim, o conhecimento sobre a conceituação e as derivações de situações da violência obstétrica permite que o trabalho seja dialogado para construção coletiva da assistência exitosa.
A formação em saúde constitui alicerce para o enfrentamento da violência obstétrica, potencializando mudanças no cotidiano do processo de trabalho. O MS investe em cursos de aprimoramento na atenção ao parto e nascimento e criou, em 2017, o Projeto de Aprimoramento e Inovação no Cuidado e Ensino de Obstetrícia e Neonatologia, denominado ApiceOn, com parceria de diversas instituições para transformação do modelo assistencial brasileiro(27). Esse projeto objetiva a qualificação de profissionais de saúde na atenção e no cuidado ao parto e nascimento; o planejamento reprodutivo; a atenção à mulher em situações de violência, abortamento e aborto legal(27). Assim, a capacitação profissional visa ao treinamento em serviço que propõe garantir mudança da realidade institucional dos serviços de saúde obstétricos.
O aprimoramento profissional representa importante iniciativa para o enfrentamento e combate da violência obstétrica, uma vez que essa estratégia fornece atualização profissional baseada em novas evidências científicas e boas práticas de assistência ao parto, repensando no coletivo para a forma de cuidar das mulheres, pelo processo de trabalho na assistência ao parto. A ligação entre a formação profissional e o aprimoramento profissional caminham unidos para prestar o melhor cuidado durante o parto, pós-parto e puerpério, além da atualização e obtenção de nova visão de proposta de cuidar, com a interprofissionalidade pela prática colaborativa. Assim, há mudança real perante as percepções dos enfermeiros obstétricos, que a partir da formação em saúde, tem o potencial de transformação da realidade institucional. A formação denota meio de diálogo e trabalho coletivo para o enfrentamento da violência obstétrica.
Por meio dos cursos de aprimoramento, torna-se possível ressignificar o atual cenário obstétrico tecnicista e biomédico para um modelo humanizado e colaborativo, com processo prático, articulação com a gestão dos serviços do profissional e mudança na política institucional, que perpassa pelo trabalho de transformação da realidade da saúde das mulheres. Ademais, deve garantir assistência centrada na fisiologia do parto, valorizando o protagonismo da mulher e a educação em saúde para a família e comunidade. O olhar crítico e reflexivo dos profissionais reflete e impulsiona ações, podendo transformá-las e desenvolvê-las no melhor potencial.
A capacitação dos profissionais de saúde consiste em um dos pontos centrais da Política Nacional de Humanização, descritos na atual Política Nacional de Educação Permanente, aprovada no ano de 2003, como proposta para mudança da realidade institucional(28). A desqualificação dos profissionais na atenção direta à mulher no âmbito do parto e nascimento, a falta de uma política institucional e do processo de trabalho dialogado para a segurança e qualidade assistencial podem contribuir para promoção e sustentação da violência obstétrica(28). Assim, torna-se primordial o aprimoramento profissional, a mudança do processo de trabalho e gestão como forma de enfrentamento da violência obstétrica.
As percepções dos participantes mostram a necessidade de educação permanente em saúde, com o intuito de colocar em prática os objetivos de transformação e ressignificação da prática obstétrica, como determina a Rede Cegonha. Esse enfrentamento da gestão traz nova possibilidade para garantir um cuidado de qualidade, rompendo com a estrutura do modelo de humanização ao parto e nascimento(28). Torna-se, ainda, necessário não somente modificar o processo de trabalho, gestão e aprimoramento, como também recursos que garantam o direito das mulheres.
O estudo teve como limitação o fato de ocorrer apenas no âmbito da Região Metropolitana do Estado do Pará, Brasil, impossibilitando a sua realização em outras localidades do estado. No entanto, entende-se que essas limitações podem incentivar a abrangência de novas pesquisas em todo o território do estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do estudo, compreenderam-se as percepções dos profissionais enfermeiros em relação à violência obstétrica. O conhecimento por parte da enfermagem sobre a violência obstétrica é bem notório, muitos reconhecem que as práticas e técnicas realizadas para com as mulheres no atual modelo obstétrico não possuem fundamentação científica, nem, tampouco, são recomendadas. Acrescente-se que a violência no campo físico, psicológico, moral, sexual e institucional perpetuam a negligência e discriminação contra os direitos das mulheres.
No entanto, o processo formativo constitui importante estratégia para o enfrentamento da violência obstétrica em todo o ciclo gravídico-puerperal. A formação em saúde permite garantir mudanças cotidianas nos serviços de atenção materno, com processo de trabalho de toda equipe profissional, para promoção de assistência respeitosa e exitosa no cuidado feminino. A humanização e o conhecimento científico permitem a transformação e ressignificação do cuidado materno.
Logo, torna-se necessária a criação de lei específica contra a violência obstétrica, pois, apesar de existirem políticas públicas, como a Rede Cegonha, outras portarias e recomendações de boas práticas, as leis de violência contra a mulher são inexistentes, assim, não há amparo legal às vítimas dessas práticas, consequentemente, os infratores não se sentem ameaçados. Portanto, a punição dos profissionais que realizarem atos violentos à mulher deve ser mobilizada no contexto da saúde materna, com mudanças no cotidiano do processo de trabalho.
Enfim, a pesquisa proporcionou explorar as percepções da enfermagem obstétrica sobre a violência contra a mulher no campo do parto e nascimento, além de destacar a importância desta para a mudança do atual cenário. Por isso, há indicativo da atenção de gestores, outros profissionais, além de docentes de instituições de ensino para investigação sobre as percepções sobre a violência obstétrica, de modo a possibilitar a interpretação de algumas percepções oriundas das práticas da gestão, assistencial e atuação docente, com temas relacionados à violência obstétrica.
REFERÊNCIAS
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Autor 1 – Elizabeth Pinheiro Araújo
Contribuições: Concepção e desenho do estudo, análise e interpretação dos dados, revisão final com
participação crítica no manuscrito.
Autor 2 - Diego Pereira Rodrigues
Contribuições: Concepção e desenho do estudo, análise e interpretação dos dados, revisão final com
participação crítica no manuscrito.
Autor 3 - Valdecyr Herdy Alves
Contribuições: Concepção e desenho do estudo, análise e interpretação dos dados, revisão final com
participação crítica no manuscrito.
Autor 4 – Andressa Tavares Parente
Contribuições: Concepção e desenho do estudo, revisão final com participação crítica e análise
intelectual no manuscrito.
Autor 5 – Antonia Viviane Menezes Souza
Contribuições: Revisão final com participação crítica e análise intelectual no manuscrito.
Autor 6 - Tatiana do Socorro dos Santos Calandrini
Contribuições: Concepção e desenho do estudo e análise e interpretação dos dados.
Autor 7 - Reginaldo Lemos Soares Ferreira
Contribuições: Revisão final com participação crítica e análise intelectual no manuscrito.
Autor 8 - Giovanna Rosario Soanno Marchiori
Contribuições: Revisão final com participação crítica e análise intelectual no manuscrito.
Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519
Rev Enferm Atual In Derme 2024;98(4): e024414