EDITORIAL
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E AS RELAÇÕES TERAPÊUTICAS NA SAÚDE MENTAL: POSSIBILIDADES E DESAFIOS
ARTIFICIAL INTELLIGENCE AND THERAPEUTIC RELATIONSHIPS IN MENTAL HEALTH: POSSIBILITIES AND CHALLENGES
INTELIGENCIA ARTIFICIAL Y RELACIONES TERAPÉUTICAS EN SALUD MENTAL: POSIBILIDADES Y DESAFÍOS
https://doi.org/10.31011/reaid-2024-v.98-n.2-art.2289
Christopher Wagstaff1
Márcia Astrês Fernandes2
1University of Birmingham, Birmingham, United Kingdom. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8013- 1195
2Universidade Federal do Piauí, Teresina, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9781-0752
Autor correspondente
Christopher Wagstaff School of Health SCiences. University of Birmingham – Edgbaston, Birmingham, B15 2TT, United Kingdom. Tel.: +44(0)1214158589. E-mail: c.wagstaff@bham.ac.uk
Submissão: 12-06-2024
Aprovado: 12-06-2024
A Inteligência Artificial (IA) tem feito incursões significativas em vários campos, inclusive na área de cuidados e serviços de saúde mental. Com o avanço das tecnologias de IA, há um interesse crescente sobre o seu potencial na transformação das relações terapêuticas. Este editorial explora esse contexto e traz reflexões sobre as possibilidades da IA substituir as relações terapêuticas, examinando benefícios, limitações, considerações éticas e possibilidades futuras.
Existem questionamentos fundamentais e norteadores que devemos fazer: desejamos que a IA substitua as relações terapêuticas? Valorizamos o contato humano sutilmente diferenciado? Existe talvez uma divisão geracional dentro desse cenário?
Em termos de definição, uma relação terapêutica na enfermagem em saúde mental é uma aliança profissional e interpessoal, na qual enfermeiro e paciente colaboram para promover a saúde e o bem-estar deste paciente. Essa relação é construída com base na confiança, empatia, respeito e limites claros, o que permite que o paciente se sinta seguro e compreendido ao discutir as suas questões pessoais. Envolve ainda escuta ativa, validação das experiências do paciente e cuidado consistente e compassivo, o que ajuda a promover um ambiente de apoio propício à recuperação e à estabilidade da saúde mental do paciente.
De maneira positiva, a IA está evoluindo rapidamente e tem ofertado soluções inovadoras para os cuidados de saúde mental. Chatbots, terapeutas virtuais e aplicativos de saúde mental com tecnologia de IA são projetados para fornecer suporte imediato, monitorar condições de saúde mental e, inclusive, oferecer técnicas de Terapia Cognitivo Comportamental (TCC). Estas tecnologias abrem a possibilidade de acesso de forma contínua, 24 horas por dia e sete dias por semana, colmatando lacunas na disponibilidade de serviços de saúde mental.
Em relação aos benefícios da IA, pode-se ressaltar que: (1) as ferramentas terapêuticas baseadas em IA oferecem acessibilidade incomparável e podem fornecer suporte imediato aos indivíduos, independentemente de sua localização ou horário do dia. Isto se torna um ponto particularmente relevante para áreas com escassez de profissionais de saúde mental, para indivíduos com problemas de mobilidade ou para aqueles que precisem dos serviços em horários “antissociais”; (2) os serviços de saúde mental podem ser caros e as soluções de IA se constituem como uma alternativa mais acessível, além de reduzirem os custos tanto para os sistemas de saúde quanto para os pacientes, automatizando tarefas rotineiras e oferecendo soluções escaláveis; (3) as ferramentas de IA permitem que seus utilizadores procurem ajuda anonimamente, o que pode reduzir o estigma associado à busca por tratamentos de saúde mental. Indivíduos relutantes em consultar um terapeuta de forma presencial podem se sentir mais confortáveis ao utilizar uma plataforma digital; (4) ao contrário dos terapeutas humanos, que têm horários de trabalho limitados, os sistemas de IA oferecem apoio consistente e constante; além disso, as ferramentas de IA podem fornecer intervenções padronizadas e manter uma postura isenta de julgamentos.
Embora em meio aos múltiplos benefícios, devemos considerar outros pontos questionáveis. A criação de expressões em tom empático e utilizando frases padronizadas é uma coisa. Mas, queremos que evoluam sistemas que permitam os personagens excêntricos da vida? Para pessoas neurodiversas, a IA traria respostas padronizadas? Não há como negar que há benefícios da IA na terapia em saúde mental, mas será que ela poderia substituir as relações terapêuticas?
Mas é claro que existem limitações da IA nas interações terapêuticas.
Os sistemas de IA dependem fortemente de dados e algoritmos, o que pode introduzir potenciais vieses se os dados utilizados não forem representativos ou se os algoritmos apresentarem falhas. Essas irregularidades podem levar a intervenções terapêuticas inadequadas ou ineficazes. Em acréscimo, uma das desvantagens mais significativas da IA em ambientes terapêuticos é a ausência de empatia humana genuína. As relações terapêuticas baseiam-se na confiança, na empatia e na ligação emocional – qualidades que a IA atualmente luta para aprender e copiar. Embora a IA possa simular empatia através de respostas programadas, ela não pode compreender ou retribuir verdadeiramente as emoções humanas.
Uma questão que precisamos enfrentar é se esta falta de genuinidade é importante.
Como mencionado, as emoções humanas são complexas e cheias de nuances. A terapia eficaz geralmente envolve compreender e navegar nessas sutilezas. Os sistemas de IA, apesar dos seus algoritmos avançados, podem ter dificuldade em compreender e responder plenamente à intrincada dinâmica das emoções e relacionamentos humanos. Além disso, os humanos podem não ser honestos, principalmente, consigo mesmos. Quando nos fazem uma pergunta difícil ou desafiadora sobre a nossa turbulência interior, muitas vezes, não temos uma resposta simples.Muitas vezes, mentimos para nós mesmos para tornar a vida mais confortável.
A arte de ser um terapeuta habilidoso é a capacidade de desvendar essa incongruência e ajudar a pessoa a compreender seus conflitos. A relação terapêutica envolve mais do que apenas a troca de palavras; inclui linguagem corporal, tom de voz e compreensão intuitiva do terapeuta sobre as necessidades do cliente, que são elementos cruciais para construir confiança e facilitar um progresso terapêutico significativo. Os terapeutas humanos trazem uma profundidade de compreensão e inteligência emocional que a IA não consegue replicar.
No entanto, há novas descobertas sendo reveladas: o estudo do autor1 trouxe conclusões importantes sobre a associação entre as tecnologias de IA e a compaixão nos cuidados de saúde. Traz-se a análise de que, em uma série de contextos de saúde, as tecnologias de IA estão sendo utilizadas para expandir competências, como: consciência e resposta empática, comportamento relacional, habilidades de comunicação, intervenções terapêuticas, aprendizagem de desenvolvimento moral, vínculos e aliança terapêuticos.
Nos desfechos do estudo, sugere-se que é necessária uma nova conceitualização da compaixão como um sistema humano - IA de cuidado inteligente cíclico para aliviar diferentes tipos de sofrimento, construído a partir de seis eixos elementares: (1) Consciência do sofrimento (dor/angústia); (2) Compreensão do sofrimento (significado/contexto); (3) Conexão com o sofrimento (verbal/físico, sinais/símbolos); (4) Julgamento em relação ao sofrimento (julgar/agir); (5) Ação com intenção de aliviar o sofrimento; (6) Atenção ao efeito e aos resultados da resposta.Considerando a complexidade dos cuidados de saúde, o cuidado inteligente baseado no sistema humano - IA terá que ser implementado através de escolhas estratégicas, regulamentações, educação profissional e formação adaptadas.
E, então, aqui se estabelece mais um questionamento: até que ponto as combinações destes seis elementos constituem a formação de uma relação terapêutica?
Sem dúvida, o futuro próximo residirá em funções complementares que reconheçam os benefícios da IA, embora ainda não dispensem a necessidade de terapeutas humanos. Em vez de ver a IA como um substituto para os terapeutas humanos, pode ser mais produtivo considerar a IA como complementar à terapia humana. A IA pode ajudar os terapeutas, oferecendo apoio imediato a indivíduos em crise, fornecendo estratégias de enfrentamento e acalmando as situações até que a ajuda profissional esteja disponível. Ainda, a IA pode ajudar a acompanhar o progresso dos clientes ao longo do tempo, fornecendo dados valiosos aos terapeutas, melhorando a continuidade dos cuidados e garantindo que as intervenções terapêuticas sejam ajustadas, conforme necessário. A IA pode ainda aumentar as técnicas terapêuticas tradicionais com insights baseados em dados e intervenções fundamentadas em evidências, melhorando potencialmente a eficácia da terapia.
Essa integração da IA nas relações terapêuticas deve ser discutida com cautela e de maneira detalhada, principalmente, quanto às considerações éticas. Algumas questões éticas essenciais incluem garantir que os usuários estejam plenamente informados sobre o funcionamento dos sistemas de IA, sobre quais dados estão sendo coletados e como serão utilizados. O consentimento informado é fundamental para manter a confiança e a transparência. Além disso, os usuários devem ser claramente informados de que estão interagindo com IA generativa, não com um ser humano. Os sistemas de IA também devem ser projetados e testados para evitar riscos e inconsistências que possam prejudicar os usuários. Isso envolve o uso de conjuntos de dados diversos e auditoria regular de algoritmos para garantir justiça e imparcialidade do sistema.
O futuro da IA na terapia provavelmente envolverá um modelo híbrido, no qual a IA e os terapeutas humanos trabalharão juntos para fornecer cuidados de saúde mental abrangentes. Os avanços no processamento de linguagem natural, na aprendizagem automática e na computação afetiva podem melhorar a capacidade da IA de compreender e responder às emoções humanas de forma mais eficaz. A investigação e o desenvolvimento nesta área devem centrar-se na criação de sistemas de IA que possam imitar melhor a empatia humana e a inteligência emocional, incluindo a melhoria da capacidade da IA para reconhecer e responder aos sinais não-verbais e às sutilezas emocionais.
E o que podemos consolidar a respeito de tudo isso?
Embora a IA ofereça benefícios potenciais significativos para os cuidados de saúde mental, ela não pode substituir a relação terapêutica entre um terapeuta humano e seu cliente. A profundidade de compreensão, empatia e conexão emocional que os terapeutas humanos proporcionam é insubstituível. No entanto, a IA pode desempenhar um papel complementar valioso, melhorando a acessibilidade, a consistência e a eficácia dos serviços de saúde mental. Por enquanto, o futuro da IA na terapia reside na integração destas tecnologias de forma a apoiar e aumentar os terapeutas humanos, em vez de substituí-los. Ao abordar questões éticas e aproveitar os pontos fortes da IA e dos terapeutas humanos, podemos criar um sistema de cuidados de saúde mental mais acessível, eficaz e compassivo.
Fomento e Agradecimento: Os autores declaram que a pesquisa não recebeu financiamento.
Critérios de autoria
Christopher Wagstaffe; Márcia Astrês Fernandes: contribuíram substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo e na obtenção, análise e/ou interpretação dos dados; assim como, na redação e/ou revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Declaração de conflito de interesses
Nada a declarar
Editor Científico: Ítalo Arão Pereira Ribeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0778-1447