RELATO DE CASO

 

INFLUÊNCIA DA VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA NO TRATAMENTO DE ÚLCERAS DO PÉ DIABÉTICO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA: RELATO DE CASO

 

INFLUENCE OF SOCIOECONOMIC VULNERABILITY ON THE TREATMENT OF DIABETIC FOOT ULCERS IN PRIMARY CARE: CASE REPORT

 

INFLUENCIA DE LA VULNERABILIDAD SOCIOECONÓMICA EN EL TRATAMIENTO DE ÚLCERAS DEL PIE DIABÉTICO EN ATENCIÓN PRIMARIA: REPORTE DE CASO

 

https://doi.org/10.31011/reaid-2024-v.98-n.4-art.2333

 

1Aryanne Carolyne Silva Santos

2Guilherme Germano da Silva

3Janaína Nascimento Gomes Oliosi

4Welington Serra Lazarini

 

1Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil, https://orcid.org/0009-0000-5588-5350

2Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil, https://orcid.org/0009-0002-4112-1768

3Unidade de Saúde Resistência, Vitória, Brasil, https://orcid.org/0009-0005-6304-2333

4Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil, https://orcid.org/0000-0003-2798-7223

 

Autor correspondente

Aryanne Carolyne Silva Santos

Rua Cristóvão Colombo, 75, São Diogo II, Serra/ES, Brasil - CEP 29163-172, contato: +55 (27) 99971-8033, aryannesilva2002@gmail.com

 

Submissão: 19-07-2024

Aprovado: 13-12-2024

 

RESUMOS

Introdução: O Diabetes Mellitus é um distúrbio metabólico que promove elevação glicêmica persistente, associado a complicações macro e microvasculares, dentre as quais se destacam o pé diabético – principal causa de amputação não traumática de membros inferiores no país. Relato do caso: Este estudo objetiva descrever a evolução de úlceras do pé diabético em um paciente socioeconomicamente vulnerável tratadas através de um plano de cuidados baseado em evidências e adequado à realidade local, em um bairro de Vitória, Espírito Santo. O assistido foi uma pessoa de 60 anos de idade, com complicações micro e macrovasculares originadas da doença, com seis feridas em membro inferior direito, atendido de agosto a novembro de 2023 em uma Unidade de Saúde da Família, em Vitória, Espírito Santo. Anteriormente ao tratamento, a lesão maior apresentava exsudato serosanguinolento em moderada quantidade, tecido de granulação friável e hipergranulação, sinais clínicos indicativos de biofilme, esfacelo e necrose seca aderidos ao leito, além de bordas maceradas e com hiperqueratose. As outras lesões encontravam-se cobertas por tecido desvitalizado. Após 14 semanas de tratamento, observou-se que três feridas evoluíram para cicatrização completa, uma para redução em ¼ de sua área total e duas permaneceram estagnadas. Conclusão: O manejo adequado das úlceras do pé diabético, como evidenciado neste estudo de caso pela cicatrização total de três lesões e parcial de outras três após quatorze semanas, demonstra a importância de intervenções baseadas em evidências, mesmo quando aplicadas em contextos de limitações de recursos, vulnerabilidade socioeconômica e complexidade clínica.

Palavras-chave: Ferimentos e Lesões; Pé Diabético; Enfermagem de Atenção Primária.

 

ABSTRACT

Introduction: Diabetes Mellitus is a metabolic disorder that promotes persistent hyperglycemia, associated with macro and microvascular complications, among which diabetic foot stands out - the main cause of non-traumatic lower limb amputation in the country. Case report: the evolution of diabetic foot ulcers in a socioeconomically vulnerable patient, treated through an evidence-based care plan adapted to the local reality, in Vitória, Espírito Santo. The patient was a 60-year-old individual with micro and macrovascular complications originating from the disease, with six wounds on the right lower limb, treated from August to November 2023 at a Family Health Unit in Vitória, Espírito Santo. Prior to treatment, the largest lesion presented serosanguinous exudate in moderate amount, friable granulation tissue and hypergranulation, clinical signs indicative of biofilm, slough, and dry necrosis adhered to the wound bed, as well as macerated edges and hyperkeratosis. The other lesions were covered by devitalized tissue. After 14 weeks of treatment, it was observed that three wounds progressed to complete healing, one to a reduction of ¼ of its total area, and two remained stagnant. Conclusion: Appropriate management of diabetic foot ulcers, as evidenced in this case study by the complete healing of three lesions and partial healing of three others after fourteen weeks, demonstrates the importance of evidence-based interventions, even in contexts of resource limitations, socioeconomic vulnerability and clinical complexity.

Keywords: Wounds and Injuries. Diabetic Foot. Primary Care Nursing.

 

RESUMEN

Introducción: La Diabetes Mellitus es un trastorno metabólico que promueve la hiperglucemia persistente, asociada con complicaciones vasculares, entre las que destaca el pie diabético, la principal causa de amputación no traumática de miembros inferiores en Brasil. Reporte de caso: Este estudio tiene como objetivo describir la evolución de las úlceras del pie diabético en un paciente socioeconómicamente vulnerable tratado mediante un plan de cuidados basado en evidencia y adaptado a la realidad local, en un barrio de Vitória, Espírito Santo. El paciente era una persona de 60 años con complicaciones vasculares originadas por la enfermedad, con seis heridas en el miembro inferior derecho, tratadas de agosto a noviembre de 2023 en una Unidad de Salud Familiar en Vitória, Espírito Santo. Antes del tratamiento, la lesión más grande presentaba exudado serosanguinolento en cantidad moderada, tejido de granulación friable e hipergranulación, signos clínicos indicativos de biofilm, esfacelo y necrosis seca adheridos al lecho de la herida, además de bordes macerados e hiperqueratosis. Las otras lesiones estaban cubiertas por tejido desvitalizado. Después de 14 semanas de tratamiento, se observó que tres heridas progresaron hacia una cicatrización completa, una hacia una reducción del ¼ de su área total y solo una permaneció estancada. Conclusión: El manejo adecuado de las úlceras del pie diabético, como lo demuestra este estudio de caso con la curación completa de tres lesiones y la curación parcial de otras tres después de catorce semanas, demuestra la importancia de las intervenciones basadas en evidencia, incluso cuando se aplican en contextos de limitaciones de recursos, vulnerabilidad socioeconómica. y complejidad clínica.

Palabras clave: Heridas y Lesiones. Pie Diabético. Enfermería de Atención Primaria.

 

 

INTRODUÇÃO

O Diabetes Mellitus (DM) é definido como um distúrbio no metabolismo que promove a persistência de elevados níveis glicêmicos na corrente sanguínea, devido a ausência do hormônio insulina (tipo 1) e/ou da não efetivação da sua ação (tipo 2). Os sintomas clássicos (poliúria, polidipsia, polifagia e emagrecimento inexplicado), diferentemente do DM1, não costumam estar presentes no DM2, sendo necessário o rastreio precoce através do acompanhamento de fatores de risco, como história familiar de DM, idade avançada, obesidade, hipertensão arterial e dislipidemia1.

A descompensação prolongada dos níveis de glicose pode resultar em complicações agudas, como crises de hiperglicemia ou hipoglicemia, e crônicas, como doenças macrovasculares (insuficiência arterial periférica, doença coronariana e doença cerebrovascular) e microvasculares (retinopatia diabética, nefropatia diabética e neuropatia diabética), complicações que estão associadas à redução da qualidade de vida e ao aumento da morbimortalidade1.

Dentre as complicações evitáveis provocadas por estas alterações neurovasculares está o pé diabético, definido pelo Grupo de Trabalho Internacional sobre o Pé Diabético (IWFGD), como lesões nos tecidos profundos nos membros inferiores em pessoas com diabetes, geralmente com dois ou mais fatores de risco simultaneamente, em especial a neuropatia periférica e a doença arterial obstrutiva periférica. Essas condições levam a perda da sensibilidade protetora, a mudanças na anatomofisiologia natural dos pés e a limitação da mobilidade articular, aumentando a carga biomecânica sobre o membro e levando ao surgimento de pontos de pressão que, somados ao ressecamento cutâneo e a traumas, levam a ulceração da pele que podem evoluir para amputação de dedos, pés ou pernas2,3.

Considerando a alta prevalência do DM no Brasil, sendo esta a principal causa de amputação não traumática de membros inferiores no país, e devido também ao fato de que 85% das amputações em pessoas com essa condição são precedidas por ulceração4, é imprescindível a avaliação periódica de maneira integral dessa população a fim de facilitar a estratificação do risco e a implementação, em tempo oportuno, de planos terapêuticos voltados à promoção, prevenção e recuperação da saúde para impedir ou minimizar os desfechos negativos produzidos por esta doença5.

Embora pessoas em condição de vulnerabilidade socioeconômica estejam mais suscetíveis às complicações do pé diabético6, a Atenção Primária à Saúde (APS) – porta de entrada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e palco onde as ações e os serviços direcionados a esse público são executados – não é facilmente acessada por pessoas com DM, devido a fatores como: problemas de organização de fluxo, absenteísmo, falta de recursos humanos e materiais, sobrecarga dos profissionais de saúde (ambos da Equipe de Saúde da Família e da equipe multidisciplinar) e sucateamento dos serviços de saúde7.

Somando isso à dificuldade de controle destes indivíduos sobre os condicionantes de saúde relacionados a seus hábitos de vida (alimentação, higiene e atividade física)6, há uma consolidação e perpetuação do DM como um problema de saúde pública de alto impacto na qualidade de vida, gerando consequências de cunho econômico, social e psicológico para o paciente e sua família, além de grande oneração ao SUS no desenvolvimento de intervenções para seu tratamento e reabilitação em todos os níveis de atenção à saúde5.

Nesse sentido, este relato de caso tem como objetivo descrever a evolução de úlceras do pé diabético em um paciente socioeconomicamente vulnerável tratadas através de um plano de cuidados baseado em evidências e adequado à realidade local, em um bairro de Vitória, Espírito Santo.

 

MÉTODOS

Trata-se de um relato de caso sobre o tratamento de úlceras cutâneas provocadas por complicações do diabetes mellitus em um paciente socioeconomicamente vulnerável com múltiplas comorbidades em uma Unidade de Saúde da Família no município de Vitória, Espírito Santo. As consultas domiciliares foram realizadas no contexto do estágio curricular obrigatório por discentes e docente do curso de Enfermagem e por uma enfermeira da equipe de Saúde da Família. O acompanhamento do paciente foi realizado entre os meses de agosto a novembro de 2023, totalizando 14 semanas de atendimento. Dados complementares foram obtidos através de prontuário eletrônico, notas de alta hospitalar, laudos e receitas médicas. Foi aplicado o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual continha também a solicitação para utilização das imagens de evolução da lesão. Este estudo foi aprovado pela Comissão Técnica de Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Vitória e pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo sob o CAAE: 78960524.3.0000.5060.

 

RESULTADOS

Após 14 semanas de tratamento, das seis feridas, três evoluíram para cicatrização completa e uma para redução em ¼ de sua área total e duas apresentaram estagnação, como descrito no caso clínico a seguir:

 

Caso Clínico

Pessoa negra, do sexo masculino, 60 anos de idade, domiciliado, com deficiência física (em uso de cadeira de rodas) e visual, casado, reside com a esposa em um bairro vulnarável devido ao narcotráfico e encontra-se desempregado, sustentando-se através do Benefício por Incapacidade Temporária, em alto risco familiar segundo Escala de Coelho-Savassi – que infere sobre estratificação de risco social e de saúde, refletindo o potencial de adoecimento familiar8. Possui hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus do tipo 2 há 16 anos, através do qual desenvolveu as seguintes comorbidades: doença renal crônica em estágio 5, doença arterial obstrutiva periférica (DAOP), retinopatia (com perda total da visão desde maio de 2023) e neuropatia diabética. Em junho deste ano desenvolveu ferimento necrótico após trauma local que evoluiu para amputação transmetatársica de hálux e segundo pododáctilo – no dia 11/07/2023 – e do terceiro pododáctilo – no dia 24/08/2023 – em membro inferior direito. Além disso, possui histórico prévio de dois acidentes vasculares encefálicos nos últimos quatro anos, tendo passado por três cirurgias de revascularização miocárdica neste período. Teste com monofilamento Semmes-Weinstein relevou sensibilidade alterada em antepé e mediopé e preservada em retropé em membro direito e alterada somente em antepé em membro esquerdo. Exames laboratoriais (01/09/2023) evidenciavam eritropenia (2,9 milhões/mm³) e anemia (hemoglobina = 8,3 g/dL; hematócrito = 26,2%). Atualmente, realiza hemodiálise três vezes na semana, utiliza insulina NPH, sinvastatina, metoprolol, ácido acetilsalicílico, cilostazol, tiamina, ácido fólico, omeprazol, noripurum e os colírios brimonidina e dorzolamida. É acompanhado por equipe de saúde da família e por nefrologista, cardiologista, endocrinologista, oftalmologista e angiologista do Centro Municipal de Especialidades. Nega etilismo e tabagismo. Possui dieta restrita devido à doença renal crônica, mas afirma se alimentar bem, mesmo com edentulismo parcial devido a bruxismo. Possui dor moderada e intermitente no local da amputação, tratada com paracetamol 500mg + fosfato de codeína 30mg nos episódios mais agudos. Refere isolamento social após interrupção de atividade na igreja na qual era pastor, em decorrência da ausência de rampas para acesso à instituição. Devido a impossibilidade de locomoção até a unidade, as trocas de curativo do paciente eram feitas em domicílio pelo único técnico de enfermagem da unidade que realizava todos os curativos do território, tanto em consultório quanto em domicílio. Este seguia também as orientações desatualizadas do ambulatório de feridas da instituição responsável pela amputação, como lavagem da ferida com água do chuveiro e sabão de coco. Não foi realizado índice tornozelo-braço por ausência de doppler vascular periférico portátil. Não foi utilizado dispositivo de descarga por ausência na prefeitura e impossibilidade de aquisição pela família.

 

Evolução da Lesão

No primeiro atendimento foram observadas seis lesões em membro inferior direito: uma maior na porção medial do pé, correspondente à área amputada, e outras cinco pequenas distribuídas pelo membro, sendo uma no dorso do pé, uma no 4º pododáctilo e três na porção lateral do pé (Figura 1).

A lesão maior exibia exsudato serosanguinolento moderado, leito com tecido friável e hipergranulação, sinais de biofilme, esfacelo aderido, tecido necrótico moderado, pequenos coágulos dispersos, bordas maceradas com hiperqueratose. Outras lesões estavam cobertas por tecido desvitalizado: uma crosta de hiperqueratose no dorso do pé e crostas de necrose seca nas demais, sem exsudação. A pele ao redor das feridas apresentava-se ressecada; no dorso do pé, havia halo hiperpigmentado em torno do tecido epitelizado recente e dermatite ocre; na lateral do pé, havia eritema e descamação.

No atendimento, foi realizada limpeza das feridas com solução de soro fisiológico 0,9%, PHMB e EDTA, seguida de desbridamento mecânico no leito de todas as lesões e instrumental apenas no leito e borda da lesão maior. As feridas foram protegidas com pomada de óxido de zinco nas bordas e vaselina líquida ao redor. Utilizou-se placa de carvão ativado com prata na lesão maior e gaze estéril nas outras, cobertas por gazes e atadura de crepom. Durante o procedimento, o paciente referiu dor (6/10) e expressou desconforto ao ser manipulado.

Figura 1 - Foto da 1ª semana de atendimento

Fonte: Acervo pessoal (2023); Legenda: (A) Ferida da porção medial do pé e ferida do 4º pododáctilo; (B) Ferida do dorso do pé; (C) Feridas da porção lateral do pé.

 

O uso do gel com PHMB e EDTA, da pomada com óxido de zinco e da vaselina líquida, assim como o desbridamento mecânico e instrumental foram mantidos até o último atendimento – este último realizado de forma comedida em razão da presença de DAOP e do uso de antiplaquetário. Da 2ª a 3ª semana, foi utilizada malha estéril não aderente impregnada com vaselina como curativo primário, descontinuada por falta na unidade. Ainda na 3ª semana, houve redução da dor para 4/10. Na 4ª semana (Figura 2), iniciou-se o tratamento com o desbridante enzimático, utilizado até o último atendimento. Além disso, foi possível expor o leito da lesão distal na lateral do pé, ainda coberto por esfacelo. A lesão da porção medial do pé apresentou mudança do exsudato para piosanguinolento, diminuição do esfacelo e aumento da necrose no leito e diminuição da maceração das bordas, com aumento da hiperqueratose e ressecamento. Já a do dorso do pé apresentou exsudato seroso em pequena quantidade, com leito hipocorado, sinais clínicos de biofilme, esfacelo fortemente aderido e exposição óssea, com bordas descoladas. Devido ao ressecamento as lesões da 4ª a 5ª semana sangraram durante o desbridamento instrumental.

Figura 2 - Foto da 4ª semana de atendimento

Fonte: Acervo pessoal (2023); Legenda:(A) Ferida da porção medial do pé e ferida do 4º pododáctilo; (B) Ferida do dorso do pé; (C) Feridas da porção lateral do pé (C1 Ferida anterior e C2 Feridas posteriores).

 

A partir da 6ª semana de atendimento em diante, não houve mais relato de dor, mas sim de cócegas, demonstrando retorno da sensibilidade local. Também não houve mais friabilidade do tecido do leito da lesão maior e o desbridamento instrumental deixou de provocar sangramentos. Na 8ª semana, houve melhora clínica de todas as lesões e também diminuição do ressecamento, com exceção da do dorso do pé, que manteve-se estável. Foi possível expor o leito de outra lesão da lateral do pé, também coberta por esfacelo. A lesão maior apresentou diminuição da hipergranulação e dos tecidos inviáveis, com aumento da hiperqueratose nas bordas.

Figura 3 - Foto da 8ª semana de atendimento

Fonte: Acervo pessoal (2023)

Legenda: (A) Ferida da porção medial do pé e ferida do 4º pododáctilo; (B) Ferida do dorso do pé; (C) Feridas da porção lateral do pé (C1 Feridas distais e C2 Feridas proximais).

 

Na 9ª semana, foi possível expor o leito da última lesão da lateral do pé, hipocorado e coberto parcialmente por tecido necrótico. A partir da 10ª semana, houve diminuição do eritema que sustentou-se até o último atendimento. Também houve epitelização completa da lesão distal da porção lateral do pé. As duas lesões remanescentes dessa região apresentavam-se cobertas: a menor por tecido hiperqueratótico e a maior por esfacelo. Já a lesão maior na porção medial do pé apresentou mudança do exsudato para sanguinolento, diminuição da hipergranulação e do esfacelo e contração de bordas. As bordas de todas as lesões apresentaram piora da hiperqueratose e as áreas de perilesão piora do ressecamento.

Figura 4 - Foto da 10ª semana de atendimento

Fonte: Acervo pessoal (2023); Legenda: (A) Ferida da porção medial do pé e ferida do 4º pododáctilo; (B) Ferida do dorso do pé; (C) Feridas da porção lateral do pé (C1 Ferida distal e C2 Ferida proximal).

 

A partir da 11ª semana, iniciou-se o uso da vaselina sólida, com diminuição progressiva da hiperqueratose das bordas e do ressecamento de todas as lesões, além da redução do tamanho da lesão maior. Na 13ª semana, a lesão do 4º pododáctilo e a menor lesão da lateral do pé apresentaram-se totalmente epitelizadas. Em razão do término do estágio, na 14ª semana foi repassado o plano de cuidados com a enfermeira da equipe e com a família do paciente para manutenção das condutas até o fechamento completo das lesões restantes e futura referência ao Centro de Reabilitação Física do Espírito Santo (Crefes) para confecção de calçado adequado. A lesão da porção medial do pé apresentou mudança para serosanguinolento em pequena quantidade, diminuição do esfacelo aderido, ausência de hipergranulação, com diminuição da hiperqueratose das bordas. Já a lesão remanescente da lateral do pé apresentou leito hipocorado parcialmente visível, com esfacelo em grande quantidade, com bordas maceradas, descoladas e em epíbole. Quanto à lesão do dorso do pé, que manteve-se estável, foi recomendada avaliação com médico infectologista devido ao risco de osteomielite.

Figura 5 - Foto da 14ª semana de atendimento

Fonte: Acervo pessoal (2023); Legenda: (A) Ferida da porção medial do pé; (B) Ferida do dorso do pé; (C) Ferida da porção lateral do pé.

 

DISCUSSÃO

Perfil do paciente e barreiras de acesso

A vulnerabilidade socioeconômica é um dos fatores determinantes no processo de adoecimento e é acentuada pelo cenário brasileiro de desigualdade social e iniquidades em saúde. Nesse contexto, o paciente assistido se enquadra em diversos grupos populacionais considerados vulneráveis do ponto de vista do acesso à saúde, educação, emprego e renda, a saber: homem negro, em extremo de idade (idoso), com deficiência, desempregado, com baixo nível econômico e que habita em local de residência vulnerável9.

Somado a isso, por possuir diabetes mellitus, o perfil do paciente também se assemelha àqueles com outras doenças crônicas não transmissíveis, relatando complicações referidas por essa população como: amputação, demora em cicatrizações, dificuldade para autocuidado, limitações, dor e dificuldade de locomoção9.

Todas estas características que atravessam o paciente o colocam em um local de negligência e inobservância, complexificando o seu acolhimento e acompanhamento pela Atenção Primária à Saúde e dificultando sua vivência em sociedade, uma vez que, para além de produzirem prejuízos em sua qualidade de vida, também atravancam seu acesso ao lazer, à mobilidade e acessibilidade urbana, à alimentação com qualidade nutricional e às ações e serviços disponíveis no sistema público de saúde – já escasso em recursos humanos e materiais9.

Plano de cuidados baseado em evidência

O caso relatado é marcante por sua complexidade. A hiperglicemia sustentada é uma característica da descompensação do DM que leva ao estresse oxidativo e à disfunção endotelial, gerando danos vasculares com liberação de mediadores pró-inflamatórios, mas também: atenuação da atividade leucocitária, diminuição da angiogênese e redução da síntese de colágeno, provocando retardo no processo de reepitelização10. Somado a isso, a baixa resposta imunológica gera um ambiente propício à formação de biofilme, que também induz processos inflamatórios11. Esse conjunto de fatores torna a úlcera do pé diabético uma ferida de difícil cicatrização – diagnosticada pela presença de exsudato, esfacelo e aumento de tamanho até o terceiro dia de sua ocorrência. As múltiplas comorbidades que originam-se a partir disso impactam de forma distinta o processo saúde-doença, agravando o quadro de neurovasculopatia ou dificultando o autocuidado12.

Nesse contexto, a escolha de práticas baseadas em evidências (PBE) é primordial para o êxito terapêutico. As PBE se referem à tomada de decisão clínica efetiva a partir da melhor evidência científica disponível, da experiência clínica do profissional condutor e da preferência do paciente13.

Quanto à escolha das intervenções que compunham o plano de cuidados, foram seguidas recomendações de diferentes consensos internacionais do Instituto Internacional de Infecções em Feridas (IWII), do Grupo de Trabalho Internacional sobre o Pé Diabético (IWGDF), do Journal of Wound Care (JWC), entre outros.

Inicialmente, foi realizada a avaliação inicial da ferida, pela qual foram identificados sinais clínicos de infecção local e presença de biofilme: hipergranulação, friabilidade, aumento de exsudato e cicatrização lenta (sinais indiretos), além de eritema, exsudato purulento e aumento da dor (sinais diretos). A partir disso, aplicou-se as etapas da higiene da ferida, incluindo o uso de antimicrobiano tópico (gel com PHMB e EDTA) para limpar a lesão e reduzir a carga microbiana, e desbridamento mecânico, instrumental e enzimático para remover tecido desvitalizado e desestabilizar o biofilme11. Durante o desbridamento instrumental, respeitou-se o limiar de dor do paciente, também foi levado em conta o risco de sangramento devido ao uso de antiplaquetários e a possível isquemia ocasionada pela doença arterial periférica3. Além disso, utilizou-se técnicas adicionais, como a remodelação das bordas para alinhar com o leito das feridas, através do desbridamento do tecido hiperqueratótico, favorecendo a restauração tecidual12.

A escolha inicial do carvão ativado com prata para diminuição da carga microbiana é suportada na literatura11. No entanto, devido à escassez desta cobertura na unidade de saúde, foi optado pelo uso de malhas estéreis não aderentes impregnadas com vaselina como curativo primário, de modo a evitar aderência da gaze no tecido de granulação e diminuir o risco de sangramentos durante a remoção do curativo14. Eventualmente, o estoque deste tipo de cobertura também chegou ao fim.

O desbridante enzimático de escolha foi o gel com papaína 10%, uma enzima exógena proteolítica que pode ser utilizada sob a forma de gel como desbridante seletivo, possuindo também alguma ação anti-biofilme. Apesar de eficaz, seu uso está associado à maceração de tecidos viáveis adjacentes, especialmente nas bordas da ferida11. Por esse motivo, foi optado pelo uso concomitante desta com uma pomada com óxido de zinco, já descrito em diversos estudos como um protetor mecânico da pele, impedindo a degradação dos tecidos análogos e promovendo a cicatrização15.

Após o manejo da maceração, houve aumento do crescimento de tecido hiperqueratótico nas bordas das lesões. Para tal, foi utilizado vaselina sólida, que possui propriedades emolientes capazes de facilitar o desbridamento deste tipo de tecido. Anteriormente, apenas a vaselina líquida era utilizada, porém com função de evitar perda transepidérmica de água, mantendo a pele hidratada16.

Dos produtos utilizados, somente o gel com papaína 10% (R$75,00 por 50g) e as vaselinas líquida (R$12,00 por 100ml) e sólida (R$15,00 por 100g) foram comprados pela família com prescrição da enfermeira da equipe, sendo os demais disponibilizados pela unidade de saúde. Embora a família tenha conseguido adquiri-los, isso não significa que eles sejam acessíveis a toda população.

Embora pontuado na literatura como item importante, a ausência de doppler portátil para aferição do índice tornozelo-braço não impediu a realização das condutas terapêuticas, focadas na resposta das lesões ao tratamento – posto que mesmo a melhor evidência científica disponível precisa estar adequada à realidade de sua aplicação, o que pode significar adequação de conduta guiada pela expertise clínica do profissional executor3,13.

Continuidade do cuidado

Os atendimentos do paciente estavam atrelados ao estágio obrigatório dos discentes, portanto, não foi possível acompanhar o paciente até o fechamento completo das lesões. No entanto, anteriormente ao término do campo, foi realizada reunião com a enfermeira responsável pelo paciente para definir estratégias de manutenção do plano de cuidados com a participação predominante da família e visitas domiciliares periódicas para acompanhamento longitudinal e execução das etapas da higiene da ferida que não poderiam ser desempenhadas por outra pessoa senão o enfermeiro17.

Frisa-se, nesse contexto, a importância do enfermeiro como um facilitador da prática da educação em saúde para auxiliar na compreensão e letramento em saúde do paciente e sua família acerca dos aspectos que envolvem o DM e suas complicações, bem como estimular alterações comportamentais visando maior adesão ao tratamento e manutenção de níveis glicêmicos compatíveis com a qualidade de vida executável dentro das limitações pré-existentes – visto que a capacitação da família para o cuidado baseado em evidências, além de permitir mais autonomia, reduzir os índices de iatrogenia e aumentar confiança na execução das atividades diárias, alivia a demanda sob a unidade de saúde17.

Por fim, o tratamento descrito neste estudo mostrou-se relevante devido ao fato de ter sido observado durante a evolução clínica das feridas o controle da infecção local e do biofilme, consequentemente diminuindo os sinais e sintomas descritos, tais como exsudato, tecidos inviáveis (necrose e esfacelo), eritema e dor à manipulação, impedindo o desfecho de amputação e melhorando a qualidade de vida do paciente e sua família.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O manejo adequado das úlceras do pé diabético, como evidenciado neste estudo de caso pela cicatrização total de três lesões e parcial de outras três após quatorze semanas, demonstra a importância de intervenções baseadas em evidências, mesmo quando aplicadas em contextos de limitações de recursos, vulnerabilidade socioeconômica e complexidade clínica.

O tratamento eficaz, que incluiu desbridamento, uso de antimicrobianos e cuidados específicos com as bordas das lesões, mostrou-se fundamental para a evolução positiva das feridas, prevenindo a progressão para amputações adicionais e melhorando a qualidade de vida do paciente.

Além disso, destaca-se o papel crucial da Atenção Primária à Saúde (APS), que, embora enfrente desafios significativos, como a escassez de recursos humanos e materiais e barreiras de acesso, pode contribuir substancialmente para o controle das complicações do diabetes mellitus (DM) através do acompanhamento contínuo do paciente, por meio de uma abordagem integral e multidisciplinar – o que é potencializado no contexto dos estágios supervisionados dos cursos de saúde, nos quais a colaboração com as universidades permite, durante a aplicação prática do conhecimento acadêmico, o fortalecimento da capacidade de atendimento das unidades de saúde para ofertar assistência de qualidade à população vulnerável daquele território.

Esse estudo evidencia a necessidade de políticas públicas que fortaleçam a APS, melhorando o acesso aos recursos necessários para o tratamento do pé diabético, ao mesmo tempo em que oferece reflexões sobre a aplicação de práticas de cuidados baseadas em evidências para a melhoria dos desfechos em pacientes com DM em situações de vulnerabilidade.

 

REFERÊNCIAS   

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3.                  Schaper NC, van Netten JJ, Apelqvist J, Bus SA, Fitridge R, Game F, et al. Practical guidelines on the prevention and management of diabetes-related foot disease (IWGDF 2023 update). Diabetes/metabolism research reviews [Internet]. 2023 [citado 2024 Jan 05];40(3), e3657. DOI: https://doi.org/10.1002/dmrr.3657.

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Fomento e Agradecimento

Esta pesquisa não recebeu financiamento externo, sendo os materiais utilizados durante os atendimentos fornecidos pela Unidade de Saúde do município ou adquiridos diretamente pela família do atendido.

Critérios de autoria (contribuições dos autores)

Foram considerados autores aqueles que contribuíram para elaboração do artigo, conceberam e desenharam o estudo3,4, participaram da coleta, análise e interpretação dos dados1,2, elaboraram os manuscritos1,2 e participaram da revisão crítica e de redação do manuscrito e aprovaram a versão final3,4.

Declaração de conflito de interesses

Nada a declarar

Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519

Rev Enferm Atual In Derme 2024;98(4): e024432                    

 Atribuição CCBY