ARTIGO ORIGINAL
METAMORFOSE NO CÁRCERE: IDENTIDADE E POSSIBILIDADES DE CUIDADO EM UM SISTEMA PRISIONAL ALTERNATIVO
METAMORPHOSIS IN JAIL: IDENTITY AND POSSIBILITIES OF CARE IN AN ALTERNATIVE PRISON SYSTEM
METAMORFOSIS EN LA CARCEL: IDENTIDAD Y POSIBILIDADES DE CUIDADO EN UN SISTEMA PENITENCIARIO ALTERNATIVO
https://doi.org/10.31011/reaid-2024-v.98-n.4-art.2425
1Leyla Gabriela Verner Amaral Brandão
2Beatriz Santana Caçador
4Ricardo Otávio Maia Gusmão
5Lopes Lena Tchivala
6Laylla Veridiana Castória Silva
7Maria José Menezes Brito
1Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte- MG, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6910-4535
2Universidade Federal de Viçosa, Viçosa- MG, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4463-3611
3Universidade Federal de Alfenas, Alfenas-MG, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3729-501X
4Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte- MG, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9941-1114
5Universidade Federal do Piauí. Teresina-Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5881-5347
6Universidade Federal de Viçosa. Viçosa-MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6488-3485
7Universidade Federal de Minas Gerias, Belo Horizonte- MG, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9183-1982
Autor correspondente
Leyla Gabriela Verner Amaral Brandão
Escola de Enfermagem
Av. Prof. Alfredo Balena, 190 - Santa Efigênia - Belo Horizonte – MG – Brasil. CEP: 30130-100. E-mail: leylagabrielawa@hotmail.com
Submissão: 08-11-2024
Aprovado: 04-12-2024
RESUMO
Introdução: O sistema prisional enfrenta grandes desafios, como superlotação, condições inadequadas e a falta de reintegração social dos indivíduos privados de liberdade. Nesse contexto, o método Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) surge como alternativa ao sistema tradicional, oferecendo um modelo humanizado, focado na recuperação e reintegração social, com respeito à dignidade dos recuperandos. Objetivo: Compreender aspectos identitários e as possibilidades de cuidado prestado ao privado de liberdade em uma Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC). Métodos: Pesquisa qualitativa, realizada com 15 recuperandos de uma APAC no interior de Minas Gerais. Realizou-se entrevista, com roteiro semiestruturado entre os meses de outubro e dezembro de 2023 e Análise de Conteúdo de Bardin. Aspectos éticos foram respeitados (sob o parecer nº 6.187.415). Resultados: Emergiram da pesquisa duas categorias de significados: 1) (Re) Configuração identitária do privado de liberdade na APAC e 2) Cuidado relacional e humanização. Considerações finais: A APAC possui perfil diferenciado de população privada de liberdade comparado ao conjunto de encarcerados no Brasil, configurando uma elite menos negra e mais escolarizada. O método APAC tem como potencial resgatar identidade, dignidade e humanidade dos encarcerados, significando-lhes a própria liberdade, ainda que no cárcere, por constituir-se uns lócus favorável a produção do cuidado na perspectiva ética.
Palavras-chave: Pessoas Privadas de Liberdade; Direito à Saúde; Integralidade em Saúde; Direitos Humanos.
ABSTRACT
Introduction: The prison system faces major challenges, such as overcrowding, inadequate conditions and the lack of social reintegration of individuals deprived of their liberty. In this context, the Association for the Protection and Assistance of condemned (APAC) method emerges as an alternative to the traditional system, offering a humanized model, focused on recovery and social reintegration, with respect for the dignity of those recovering. Objective: To understand identity aspects and the possibilities of care provided to those deprived of liberty in an Association for the Protection and Assistance of condemned (APAC). Methods: Qualitative research, carried out with 15 people recovering from an APAC in the interior of Minas Gerais. Interview was carried out, with a semi-structured script between the months of October and December 2023 and Content Analysis by Bardin. Ethical aspects were respected (sight nº 6.187.415). Results: Two categories of meanings emerged: 1) (Re) Identity configuration of those deprived of liberty in APAC and 2) Relational care and humanization. Conclusion: APAC has a different profile of the population deprived of liberty compared to the group of prisoners in Brazil, creating a less black and more educated elite. The APAC method has the potential to rescue the identity, dignity and humanity of those incarcerated, meaning their own freedom, even in prison, as it constitutes a locus favorable to the production of care from an ethical perspective.
Keywords: People Deprived of Liberty; Right to Health; Integrality in Health; Human Rights.
RESUMEN
Introducción: El sistema penitenciario enfrenta grandes desafíos, como el hacinamiento, las condiciones inadecuadas y la falta de reinserción social de las personas privadas de su libertad. En este contexto, el método Asociación de Protección y Asistencia a Condenados (APAC) surge como una alternativa al sistema tradicional, ofreciendo un modelo humanizado, enfocado a la recuperación y la reinserción social, con respeto a la dignidad de quienes se recuperan. Objetivo: Comprender aspectos identitarios y las posibilidades de atención brindada a las personas privadas de libertad en una Asociación de Protección y Asistencia a Condenados (APAC). Métodos: Investigación cualitativa, realizada con 15 personas convalecientes de una APAC en el interior de Minas Gerais. Se realizó entrevista, con guion semiestructurado entre los meses de octubre y diciembre de 2023 y Análisis de Contenido por Bardin. Se respetaron los aspectos éticos. Resultados: Surgieron dos categorías de significados:1) (Re)Configuración identitaria de personas privadas de libertad en APAC y 2)Cuidado relacional y humanización. Conclusión: APAC tiene un perfil diferente de población privada de libertad en comparación con el grupo de presos en Brasil, creando una élite menos negra y más educada. El método APAC tiene el potencial de rescatar la identidad, la dignidad y la humanidad de las personas encarceladas, es decir, su propia libertad, incluso en prisión, ya que constituye un locus favorable a la producción de cuidados desde una perspectiva ética.
Palabras clave: Personas Privadas de Libertad; Derecho a la Salud; Integralidad en Salud; Derechos Humanos.
INTRODUÇÃO
O sistema prisional enfrenta grandes desafios, como superlotação, condições inadequadas e a falta de reintegração social dos indivíduos privados de liberdade. No Brasil e em outros países, o sistema convencional vem se apresentando falho na promoção da reabilitação, resultando em altas taxas de reincidência e marginalização social. Ressalta-se que a privação de liberdade impacta na configuração identitária e na autonomia dos indivíduos, agravando a desumanização e dificultando sua reintegração na sociedade(1-2).
O ambiente prisional tradicional desencadeia efeitos psicológicos e sociais devastadores, perpetuando ciclos de exclusão. Nesse contexto, a perda de autonomia é uma das principais barreiras à reabilitação, tornando a restauração da identidade e, consequentemente, da autonomia essenciais para o sucesso de qualquer programa de reintegração(2).
Indivíduos privados de liberdade enfrentam vulnerabilidades específicas que são amplificadas pelas expectativas e pressões sociais relacionadas à masculinidade(3). Essas exigências incluem a demonstração de força, controle e invulnerabilidade, características tradicionalmente associadas ao papel masculino. No contexto prisional, onde hierarquia e violência são parte da rotina, essas pressões
culturais intensificam comportamentos agressivos, contribuindo para o aumento da violência entre os presos, tornando o ambiente ainda mais opressivo(4-5).
Diante desse cenário, o método da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de lidar com indivíduos privados de liberdade se apresenta como uma alternativa ao sistema prisional tradicional, oferecendo um modelo humanizado, focado na recuperação e reintegração social, com respeito à dignidade dos recuperandos. A APAC valoriza a participação da sociedade e o fortalecimento dos laços familiares, reduzindo a reincidência criminal e ganhando reconhecimento tanto no Brasil quanto no exterior(6).
Ao promover um ambiente de cuidado e apoio, a APAC possibilita a ressignificação da experiência de estar privado de liberdade, da masculinidade e, consequentemente, a (re)construção da identidade, aspectos fundamentais para o fortalecimento da autoestima e da autonomia(6). Assim, considerando aspectos de sua autonomia e possibilidades de cuidado durante o cumprimento da pena, o presente estudo tem como objetivo compreender aspectos identitários e as possibilidades de cuidado prestado ao privado de liberdade em uma Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC).
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, ancorada nos referenciais teórico-metodológicos da ética do cuidado(7) e alicerçada no referencial teórico de identidade, sob a perspectiva sociológica de Claude Dubar(8). O estudo seguiu as recomendações do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) sobre como relatar, com qualidade, a condução de estudos qualitativos(9).
O estudo foi conduzido em uma unidade da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) localizada em um município mineiro, que possui 49 vagas destinadas exclusivamente a indivíduos do sexo masculino, sendo 29 para o regime fechado e 20 para o regime semiaberto. Os participantes da pesquisa eram homens com idade superior a 18 anos. Foram excluídos aqueles que, devido a audiências de custódia, julgamentos ou hospitalizações, não estavam presentes na unidade durante o período de coleta de dados. Ao final, a amostra incluiu 15 indivíduos privados de liberdade, todos em regime fechado, independentemente de terem condenação definitiva ou não.
Os pesquisadores, previamente treinados, já possuíam vínculo com os recuperandos devido a ações extensionistas realizadas no ambiente da APAC. A coleta de dados foi realizada entre outubro e dezembro de 2023, por meio de entrevistas baseadas em um roteiro de entrevista semiestruturado, que abordava questões sociodemográficas e incluía uma pergunta discursiva: "Como você descreve a experiência de estar na APAC, em relação à sua identidade, autonomia e cuidado”? As entrevistas ocorreram em locais privados e seguros, conforme a disponibilidade dos participantes. Para garantir o anonimato e a confidencialidade das informações, foram atribuídos codinomes aos entrevistados, utilizando nomes de borboletas como símbolo da metamorfose vivida pelos recuperandos.
A coleta de dados foi encerrada com base no critério de saturação teórica, atingido quando novas informações não traziam mais contribuições relevantes ao estudo(10). As entrevistas foram gravadas com consentimento prévio e transcritas na íntegra. Procedeu-se à correção ortográfica e textual, mantendo o sentido e o conteúdo original, e removendo termos coloquiais para adequação ao padrão acadêmico.
Os dados foram analisados utilizando a técnica de Análise de Conteúdo de Bardin (11), que inclui três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, seguidas de inferência e interpretação. A interpretação foi orientada pelos pressupostos de cuidado como modo de ser no mundo, cuidado como relações, autonomia, protagonismo do indivíduo, dialogicidade, participação política, pensamento crítico, construção coletiva e transformação(7).
O estudo seguiu os princípios éticos estabelecidos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos de uma universidade pública, sob o parecer nº 6.187.415, em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(12).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Todos os participantes eram homens (100%), dos quais a maioria se autodeclarou parda (60%), com o restante dividido entre brancos (20%) e negros (20%). A maior parte dos participantes era composta por jovens adultos entre 25 e 36 anos (73,4%). Para a maioria (53,4%), essa era a primeira experiência de privação de liberdade, boa parte dos participantes (80%) recebiam visitas regulares de familiares, sendo essas visitas feitas por principalmente mulheres (73,4%), incluindo mães, companheiras e irmãs dos recuperandos. Em relação à escolaridade, a maioria (53,4%) concluíram o ensino médio, sendo que metade (26,7%) completaram essa formação dentro da APAC.
Antes do cárcere, quase todos os participantes (93,4%) estavam inseridos no mercado de trabalho: boa parte (40%) com carteira assinada, outros (40%) no setor informal e outros (13,4%) como autônomos. A maioria (53,4%) não fazia uso de medicação contínua; entre os que utilizavam, parte (20%) usavam medicamentos para saúde mental, indicando que alguns (20%) participantes apresentavam transtornos mentais diagnosticados.
Tais dados, enfatizam a importância de discutirmos o quanto o predomínio de participantes negros (pardos e pretos) reflete as disparidades raciais presentes no sistema penitenciário brasileiro. A esse respeito, estudos apontam que indivíduos negros são desproporcionalmente representados
nas populações carcerárias, evidenciando uma persistente desigualdade racial no acesso à justiça e nas condições de encarceramento(13-14).
No entanto, é importante destacar o possível colorismo percebido no sistema de encaminhamento para a APAC. O colorismo refere-se a uma forma de discriminação baseada no tom de pele, em que indivíduos de pele mais escura, mesmo dentro do mesmo grupo racial, frequentemente enfrentam mais preconceitos e desvantagens sociais do que aqueles com tom de pele mais clara(15).
Um estudo realizado em um presídio no mesmo município da APAC analisada revelou uma composição racial distinta, com 39% dos indivíduos autodeclarados pretos, 28% pardos e 33% brancos(4). Essa discrepância na composição racial entre a APAC e o presídio evidencia um possível viés de colorismo, sugerindo que o tom de pele pode influenciar a definição de como o indivíduo em privação de liberdade cumprirá a pena no presídio ou terá a oportunidade de ir para a APAC. Essa situação agrava desigualdades observadas nas prisões tradicionais e questiona a equidade no acesso a sistemas alternativos de ressocialização.
A faixa etária dos participantes está alinhada com a literatura, que aponta uma prevalência de jovens adultos no sistema prisional, frequentemente associados a maior vulnerabilidade socioeconômica e menor estabilidade emocional, fatores que contribuem para a criminalidade(16). A predominância de jovens indica a necessidade de intervenções focadas em educação, capacitação profissional e suporte psicológico, fundamentais para a reintegração social e redução da reincidência(17).
Destacam-se os dados que indicam maioria dos participantes está vivenciando o cárcere pela primeira vez, reforçando a importância de programas de reabilitação direcionados a essa população. Indivíduos sem histórico de encarceramento têm maior probabilidade de responder positivamente a intervenções educativas e terapêuticas, o que reduz as chances de reincidência. Além disso, ao participarem de ações para melhorar a empregabilidade após a privação de liberdade, possuem 2,5 vezes mais chances de obter trabalho(18). Esse dado sugere que a APAC, ao focar nas primeiras internações, está bem posicionada para influenciar positivamente as trajetórias dos recuperandos.
Por consequência, a ressignificação da vivência prisional pode ser promovida por meio de projetos educativos, culturais, oferecendo novas perspectivas de vida e desenvolvimento humano dentro do ambiente prisional. Dessa forma, o indivíduo pode passar a enxergar o espaço do cárcere não apenas como punitivo, mas como uma fase transitória que pode ser utilizada para o crescimento pessoal e a transformação.
O envolvimento familiar, especialmente das mulheres, destaca o papel do apoio emocional
e social na reabilitação dos recuperandos. A presença predominante de mães, companheiras e irmãs nas visitas indica que os laços com figuras femininas desempenham um papel crucial no processo de recuperação. Elas oferecem conforto, suporte emocional e um cuidado essencial para a saúde mental dos internos, contribuindo para sua reintegração social após o período de encarceramento. (19).
A escolaridade dos participantes da pesquisa indica um nível educacional relativamente elevado, considerando as especificidades e dados referentes à população carcerária em geral(4,20). A educação é amplamente associada à redução da reincidência, pois proporciona habilidades e oportunidades que facilitam a reintegração ao mercado de trabalho(18). A conclusão dos estudos pelos recuperandos na APAC, contexto deste estudo, reforça a eficácia dos programas educativos oferecidos pela instituição e evidencia a importância de políticas educativas como ferramentas de reabilitação e prevenção da criminalidade(2,6).
A literatura sugere que o emprego formal, ao promover maior estabilidade financeira e social, reduz a vulnerabilidade à reincidência. Em contraste, a alta proporção de trabalhadores informais e autônomos indica precariedade econômica, proteção social limitada e maior risco de envolvimento em atividades ilícitas(21). Esse cenário destaca a importância de programas de capacitação profissional e inserção no mercado de trabalho pós-libertação, fundamentais para a reintegração social(6,18).
Com relação ao uso de medicação, os achados do presente estudo podem ser interpretados de duas maneiras: por um lado, sugere que uma parcela significativa dos recuperandos está relativamente estável em termos de saúde mental; por outro, indica que há um grupo considerável que podem necessitar de intervenções adicionais. Estudos indicam que transtornos mentais são prevalentes entre populações carcerárias e que o tratamento adequado é essencial para a reabilitação(22). Assim, a baixa taxa de medicação contínua pode refletir tanto a eficácia das abordagens terapêuticas da APAC quanto a necessidade de maior investimento em serviços de saúde mental para assegurar que aqueles que necessitam de tratamento recebam o suporte adequado.
Esta categoria reflete a transformação pessoal e o resgate da identidade dos recuperandos, evidenciando o processo de “renascimento” vivenciado na APAC. O tratamento digno recebido, em contraste com o sistema prisional tradicional, permitiu aos encarcerados o resgate da identidade. Conforme explicitado:
Rapaz, o método da APAC é reviver, renascer. Você chega aqui, entra pelo portão, e o motorista já diz: "Levanta a cabeça e solta os braços" [...]. A APAC ajuda muito nisso, em mostrar para a gente que temos valor, para nós mesmos e para a sociedade. Temos o livre- arbítrio de estar aqui hoje, porque, veja bem, não tem algema, não tem um policial armado vigiando nossa conversa [...]. A liberdade que temos aqui é o que nos dá forças para mostrar que as diferenças ficaram para trás. Quando entramos pelo portão, lá em cima [no presídio], somos tratados como um número, nossa identidade passa a ser um número. Aqui não [na APAC], o apelido fica para trás; aqui eu sou o Monarca, entendeu? (Monarca)
É uma paz, uma tranquilidade enorme. Para falar a verdade, eu resgatei meu nome de volta. Porque no sistema comum, eu era apenas um número, entende? A gente é tratado como um bicho qualquer. Nem um animal merece ser tratado daquela forma. Então, na APAC, eu me sinto mais tranquilo, mais em paz, mais paciente. Estou buscando meus objetivos, construindo meu sonho. Então, está dando tudo certo. (Borboleta-tigre)
Quando cheguei aqui, fiquei assustado [...]. No sistema comum, a gente está acostumado a andar de cabeça baixa e com as mãos para trás. Aqui, no dia em que eu pisei, me disseram: "Levanta a cabeça e descruza os braços" [...]. Eu tirei aquela roupa vermelha e vesti uma roupa normal, entrei e vi todo mundo me abraçando, me cumprimentando, dizendo que eu fosse bem-vindo. Aquilo mexeu muito comigo. (Almirante-vermelho)
Ah, é melhor do que no presídio! Aqui é bem diferente, temos mais oportunidades. Depois que vim para a APAC, consegui me formar e agora estou fazendo o ensino superior. (Borboleta-marfim)
Os autorrelatos dos participantes, com base nas percepções de si mesmos, revelaram os sentidos atribuídos aos seus modos de viver e serem cuidados na APAC, permitindo a construção de uma identidade em transformação, reconhecida pela singularidade e autonomia. Para Dubar(8), a identidade real, definida pela autopercepção, é capaz de gerar sentidos e significados sobre si, constituindo-se por definições que trazem a marca da humanidade.
Esse processo de reconfiguração identitária ganha importância ao transitar do modelo tradicional de gestão carcerária para o método da APAC. Segundo Erving Goffman(23), o modelo prisional tradicional é pautado pelo paradigma da instituição total, caracterizada como um local onde grande número de indivíduos em situação similar, isolados da sociedade, vivem de forma fechada e formalmente administrada. Essas instituições foram criadas para proteger a comunidade contra ameaças, sem foco no bem-estar dos encarcerados(24).
O processo de institucionalização, ou prisionalização, envolve a internalização de regras e condutas específicas desse ambiente. Enquanto na vida social o indivíduo desempenha múltiplos papéis, nas instituições totais assume exclusivamente o papel de encarcerado(25).
São características marcantes dessas instituições a submissão a uma rigidez institucional marcada pelo controle e disciplina, sua segregação social e a fragilidade na construção de papéis sociais por meio de sua limitação. Estes aspectos, encontram-se presentes no atual modelo de gestão carcerária brasileiro repercutindo nos processos de configuração da identidade do encarcerado(24).
As falas sinalizam que estes processos do poder disciplinar das instituições totais implicaram na mortificação do eu(23). Dubar(8), por sua vez, argumenta que isso pode ser explicado pela crise
identitária vivida por estas pessoas, uma vez que o aprisionamento produz uma ruptura com seus vínculos sociais e produz o assujeitamento dos encarcerados às regras institucionais. Dessa forma, as singularidades das pessoas são perdidas, a favor da institucionalização e da padronização dos processos da vida. A profissão, hábitos e modos de viver, as habilidades individuais são suprimidas e anuladas pela lógica institucional.
Por sua vez, a identidade na perspectiva sociológica, se concretiza na compreensão de suas eventuais cisões ou rupturas que são produtos de tensões ou contradições que habitam a realidade interna e o mundo social dos indivíduos(8).
Estas cisões são designadas de crise das identidades e refletem perturbações da estabilidade dos elementos que configuram os processos de identificação. Assim, a mudança nas formas de viver, nas normas, das referências, das denominações das pessoas e de seus sistemas simbólicos anteriores tencionam suas subjetividades, funcionamento psíquico e individualidades produzindo crise(26). Com base nos resultados deste estudo, isso se evidencia no modelo carcerário tradicional, onde os recuperados são reduzidos a números, tratados de forma desumanizada, obrigados a usar uniformes padronizados de núcleos predefinidos e deixados de serem chamados pelos próprios nomes. Esse tratamento contrasta fortemente com a ética do cuidado, que valoriza o respeito à dignidade e à identidade individual de cada pessoa. Enquanto o modelo tradicional distancia a recuperação de suas identidades, a ética do cuidado busca consideração e preservação de sua humanidade, promovendo um ambiente de acolhimento, suporte e respeito, essenciais para a recuperação e reintegração social.
As experiências nos presídios tradicionais, portanto, reforçam o processo de institucionalização e, como consequência, a despersonalização e desvalorização da individualidade dos participantes do estudo. Os indivíduos privados de liberdade, ao serem tratados de forma homogênea, tornam-se parte de uma massa indistinta. O uso de uniformes, cortes de cabelo e tratamentos padronizados demonstra a perda de individualidade e, consequentemente, de identidade(25).
Nesse contexto, o modelo tradicional de gestão carcerária, fundamentado no paradigma da institucionalização, visa produzir pessoas dóceis, obedientes, passivas e submissas. Assim, ocorre a mortificação da identidade dos encarcerados, já que sua autonomia não é valorizada em nenhum momento(23,25).
Em contrapartida, as vivências na modalidade APAC demostraram inaugurar um processo que valoriza a existência de indivíduos ativos e que são reconhecidos de forma singulares contribuindo para a construção de uma identidade positiva e sustentável. As falas a seguir reforçam essa perspectiva:
Você entra pelo portão, e o motorista diz: "Levanta a cabeça e solta os braços", porque chegamos acanhados, com a cabeça baixa e os braços para trás. Fazemos o último procedimento, e você já começa a pensar: "Tomara que este seja realmente o último procedimento." Aí ele fala: "Pode olhar para mim, olhe nos meus olhos, solte os braços." Então, é um renascer; o método da APAC é um renascer. (Borboleta-arco-íris)
Aqui é diferente. Na sala de aula, eu peço permissão só por respeito, mas eles mesmos dizem: "Você não precisa pedir permissão, pode sair, pode tomar água, ir ao banheiro […]" Por educação, temos o costume de pedir. É a mesma coisa em qualquer outra atividade aqui. Temos o livre-arbítrio de responder ou de ficar calados. No presídio, não é assim. Lá, se perguntam algo, você tem que responder sim ou não, e não é chamado pelo nome, mas por um número. Há uma grande diferença na forma como somos tratados e reconhecidos como pessoas. (Borboleta-rei)
Ao assumir uma posição ativa, os indivíduos privados de liberdade, na APAC, podem reconstruir suas identidades assumindo novos papéis sociais(8), colocando sua identidade em movimento. Os achados, destacam a valorização humana como diretriz central da assistência da APAC. Trata-se de uma visão positiva sobre os indivíduos privados de liberdade que ao invés de serem tratados como perigosos, são cuidados como sujeitos singulares e protagonistas de seu cuidado(7).
A valorização humana foi expressa pelos participantes na pessoalidade do tratamento recebido. Ações simples, como serem chamados pelo nome, o interesse por suas vidas e a autonomia nas atividades diárias, ressaltam a natureza humana dos indivíduos privados de liberdade, que não são reduzidos aos delitos cometidos(27). Esse reconhecimento se desenvolve por meio do incentivo ao trabalho, formação profissional, participação comunitária e familiar e reinserção social.
Eu estou na cozinha, sou responsável pela cozinha e faço laborterapia também. Quando não estou na cozinha ou na aula, estou na laborterapia, estudando. (Borboleta-azul-de- madagascar)
Elas mostram que a gente pode ser útil. Que temos atividades longe do crime. Hoje trabalho na cozinha aqui; amanhã posso estar na portaria, faço laborterapia, posso fazer uma faxina aqui em cima. Isso mostra que tenho utilidade fora do crime, entendeu? Posso trabalhar em outras funções, desenvolver habilidades e conhecimentos. Às vezes, um palito de picolé pode se transformar em um artesanato. Com uma linha e uma miçanga você faz outra coisa que pode ser produtiva. Agora estou aprendendo a mexer com isso, estou fazendo uns trabalhos lá. (Borboleta-arco-íris)
Hoje, trabalho na laborterapia pela manhã, e a partir das 14h vou para a portaria. Acho isso importante, com certeza, porque o que acontece é que você trabalha sua mente. Eu, por exemplo, trabalho na portaria, parece uma coisa simples. Mas ali minha mente está ativa, estou pensando em uma coisa, pensando em outra, lendo. (Borboleta-pavão-branco)
Eu trabalho com palito, linha, faço crochê. Na sexta e no sábado, não mexo mais com isso, porque hoje corto cabelo. Aí tiro o dia todo só para ficar na função de cortar cabelo. (Monarca)
Segundo Dubar(8) os atributos referentes às esferas pessoal e profissional são indissociáveis na configuração identitária dos indivíduos. Dessa forma, a dimensão profissional ganha importância na análise de suas identidades, dada a importância que a profissão tem na construção de sentido para
suas vidas. Os relatos a seguir refletem tal fato:
Cheguei em maio de 2021 e, em fevereiro de 2022, já ingressei na faculdade. Aqui tem o ensino fundamental completo e o ensino médio. (Olho-de-coruja)
Graças a Deus, agora estou terminando o ensino médio, me formando. Penso em fazer uma faculdade agora no começo do ano e já ingressar. (Borboleta-azul-de-madagascar)
Eu mesmo não pensava em fazer faculdade. Lá em cima, a gente não tem essa oportunidade, mas aqui temos. Por ter voltado a estudar, sinto que posso continuar, que nunca é tarde. (Borboleta-de-mil-folhas)
Sonhos que um dia eu enterrei, agora estou correndo atrás, conquistando. Já estou ingressando na faculdade. A APAC me proporcionou tudo isso; hoje já me vejo como uma pessoa mais responsável. (Borboleta-tigre)
Ah, é melhor do que no presídio! Aqui é bem diferente, temos mais oportunidades. Depois que fui para a APAC, consegui me formar e agora estou fazendo o ensino superior. (Borboleta- marfim)
Dessa forma, ao estimular a atividade profissional e a formação profissional dos indivíduos privados de liberdade, a APAC propicia a reconstrução de suas identidades por meio da ressignificação de si e pela reestruturação de seus vínculos e núcleo social. Além disso, o trabalho e a formação profissional dão sentido e sensação de pertencimento, além de reconhecimento social(8,26). Para Dubar(8) o reconhecimento é um elemento fundamental para influenciar a configuração indentitária dos indivíduos. Por meio do trabalho e formação profissional tem-se a demonstração de sua utilidade social no contexto em que vivem, o que se estende à sociedade.
A participação social e convívio familiar, ademais são outras diretrizes da APAC valorizadas pelos participantes do estudo:
Aqui, tive a oportunidade de almoçar com minha família na rua. Eu nunca dei valor a isso. É algo que a gente tinha todo dia, mas só quando perde é que passa a dar valor. (Borboleta- dama)
Ao estimular a participação social e o convívio familiar, busca-se a ressocialização dos indivíduos privados de liberdade e a reconstrução dos laços sociais perdidos com entes queridos e com a comunidade. O objetivo é preparar esses indivíduos para a vida pós-cárcere. Em vez da mortificação do sujeito, promove-se a reestruturação de sua rede, relações e identidade(24).
Os modos de viver e cuidado na APAC com seu trabalho de valorização humana utilizando- se de estratégias como o trabalho, a formação profissional, a participação comunitária e convívio familiar tem permitido aos indivíduos privados de liberdade retomarem seus projetos de vida na perspectiva de uma reinserção social(1,7-8). Os trechos abaixo destacam esses projetos:
Vou falar a verdade. Tenho planos de, quando ganhar minha liberdade, continuar ajudando a APAC. Quero vir aqui trazer meu testemunho para aqueles que estão aqui. E não só trazer o testemunho, mas continuar ajudando os que estarão aqui, tentando resgatá-los também do [...] do mal mesmo. (Borboleta-marfim)
Meu sonho é ter uma profissão, ser engenheiro ambiental. Construir minha família e dar muito orgulho para o meu pai, minha mãe e minhas irmãs, porque eles merecem. Eles não merecem mais sofrer. Já chega. Então, tenho planos para mim, e é isso. Sair daqui trabalhar, construir minha família, construir meu lar tranquilo, sem erro nenhum, de forma honesta. Honestamente. (Olho-de-coruja)
Na laborterapia estou fazendo uns chaveirinhos de miçanga e linha, e uns cachorrinhos que são bem bonitinhos e vendem muito. Então, pode ser uma forma de eu exercer esse artesanato fora ganhando dinheiro e sobrevivendo com ele, sem precisar procurar outros meios que a gente acha que são mais fáceis. (Borboleta-arco-íris)
Então, meus planos são: sair, trabalhar, montar minha casa [...] como eu disse, quero fazer esse curso, me formar, ajudar, conviver com minha família. (Monarca-zebrada)
Penso em sair daqui procurar um trabalho e, assim que me formar, buscar emprego na minha área. (Borboleta-de-cristal)
Neste sentido, a APAC se apresenta como uma alternativa ao modelo carcerário tradicional brasileiro, utilizando-se como diretriz central a valorização humana, além do respeito à individualidade e autonomia dos indivíduos privados de liberdade(6,8,27). Por meio da participação comunitária e do convívio familiar busca desconstruir a ideia de segregação dos encarcerados e, ao contrário, valoriza os laços sociais e vínculos afetivos dos apenados(27).
Por meio do trabalho e da formação profissional, busca-se resgatar as potencialidades desses indivíduos, catalisando suas capacidades e utilidades sociais, ampliando seus papéis e possibilidades de reintegração comunitária. Essa realidade favorece a reconstrução da identidade dos privados de liberdade, valorizando novos papéis e o protagonismo social(8,26), com o trabalho e a formação profissional como pilares importantes.
Ao mesmo tempo, o fortalecimento da autonomia e a possibilidade de assumir o protagonismo nas decisões e na própria vida, dentro e fora da APAC, promovem um processo de resgate do eu(7). A liberdade para estudar, se expressar e ser ouvido permite que os recuperandos ganhem autonomia para planejar o futuro e se reintegrar na sociedade(8). Falas dos participantes explicitam o referido:
Aqui há diálogo. Você é ouvido, tem voz; o que você diz, eles escutam, avaliam e buscam a melhor forma de agir, considerando se aquilo realmente será benéfico. Aqui você é ouvido; no sistema comum, você não tem voz. (Borboleta-marfim)
Se observar bem, é uma experiência nova e positiva. A disciplina ensina e prepara para a vida fora, para a sociedade. No presídio, havia humilhação; a família era humilhada. Aqui, não.
Aqui somos bem tratados, nossos direitos são respeitados, enquanto lá não eram. Os direitos eram os mesmos, mas lá não eram aplicados. (Cauda-de-andorinha)
Esta categoria engloba a experiência dos recuperandos com o cuidado humanizado na APAC, cuja construção se dá mediante o estabelecimento de relações de confiança e empatia. O tratamento diferenciado, sem algemas, e o vínculo com funcionários e voluntários fazem com que os recuperandos se sintam respeitados e valorizados, propiciando ressignificações, conferindo novos significados às experiências e às perspectivas de futuro, conforme falas a seguir:
[Aqui tem confiança]. Agora, por exemplo, eu não estaria perto de você assim; eu estaria algemado, com um agente por perto, com certeza. Aqui tem disciplina e amor. A gente chega olhando para baixo, mas eles dizem: "Levanta a cabeça" [...]. É totalmente diferente. Aqui, trata-se o ser humano; há valorização humana. (Borboleta-marfim)
Eu vim para cá para fugir, mas, quando cheguei, vi o carinho que as pessoas têm por nós, como os funcionários e voluntários. Temos esse contato com eles e, querendo ou não, esse carinho acabou me conquistando. (Borboleta-azul-de-madagascar)
Os modos de viver e a produção do cuidado configura-se de forma diferente das formas tradicionais de presídio pela existência de uma ética do cuidado(7), desse modo destaca-se a seguinte fala:
É ótimo. Desde o momento em que chegamos aqui, somos avaliados; sempre tem um voluntário ou outro conversando, atendendo, perguntando se precisamos de algo ou como estamos nos sentindo. Comparando com o sistema comum, onde ficávamos em uma galeria com 70 ou 80 presos, se você quisesse atendimento, talvez pedisse hoje e, quem sabe, fosse atendido em 2 ou 3 meses. Se estivesse passando mal ou precisasse de atendimento urgente, como uma dor de dente com a boca inchada, talvez fosse atendido na semana seguinte ou até no mês seguinte. (Olho-de-coruja)
De modo geral, a ética do cuidado, é definida como uma ética relacional baseada no cuidado e na atenção prestada ao outro(7). Dado que nenhum ser humano pode ser completamente autossuficiente ou desfrutar de plena autonomia em todas as fases da vida, a vulnerabilidade e a interdependência que partilhamos são reconhecidas. Isso nos obriga, em algum momento, a buscar relações de proteção e ajuda. Nesse contexto, torna-se visível e revalorizada a dignidade dos vínculos de dependência, que historicamente foram imperceptível, menosprezados(7-8).
Nessa perspectiva, a ética do cuidado inicia-se a partir da concepção de conceder espaço àquilo que não possui lugar, entende-se que em uma relação humana o cuidado é totalmente dependente(7). Além disso, valorizar o cuidado, também significa repensar as políticas públicas e reconhecer a importância do cuidado na construção de uma sociedade justa(1,4). Os indivíduos
privados de liberdade na APAC referem que suas vivências são marcadas pela humanização e valorização deles enquanto sujeitos.
Enfatiza-se que o caminho não é extinguir a pena, pois a aplicação dessa baseia-se em um motivo jurídico e constitucional, e é aplicada justamente para punir atos que infrinjam a liberdade da vida. Contudo, o meio não deve ser a repressão integral do condenado, tampouco a caracterização deste como um ser que perde sua humanidade(24).
Cabe ressaltar que o sucesso da APAC reside justamente em tocar nos fatores que levam à reincidência criminal. O modelo se baseia em resgatar a dignidade e oferecer oportunidades de crescimento e aprendizado de forma não violenta, com respeito, acolhimento e, sobretudo, centralizando o indivíduo em seu processo de recuperação (protagonismo). Assim, é necessário repensar a abordagem punitiva presente no sistema prisional, adotando medidas que busquem, de forma eficaz, a proteção e promoção dos direitos básicos(28).
Outro aspecto importante na promoção do protagonismo é a capacidade dos recuperandos de se prepararem para a vida fora do cárcere. A disciplina na APAC vai além de uma ferramenta de controle; é um meio de preparar os indivíduos para enfrentar os desafios da sociedade(6,24), como apontado nas falas. Ao oferecer oportunidades educacionais e sociais, a APAC expande o cuidado para além das paredes da instituição, preparando os recuperandos para assumirem um papel ativo na sociedade.
As limitações deste estudo incluem o foco em um único contexto de APAC, o que pode restringir a generalização dos achados para outras realidades prisionais. No entanto, este estudo contribui para o entendimento da ressocialização de indivíduos privados de liberdade por meio da abordagem humanizada do método APAC, que valoriza a singularidade e a ética do cuidado.
Assim, possibilita uma compreensão mais ampla do desenvolvimento humano e social, fundamentando práticas que promovem o cuidado, a autonomia e a construção de identidades. Além disso, o estudo oferece uma visão crítica do sistema prisional tradicional, sugerindo a APAC como um modelo alternativo de reabilitação que valoriza o ser humano em sua totalidade, promovendo sua reintegração social de forma mais eficaz e digna.
Compreender os aspectos identitários e as possibilidades de cuidado oferecidas aos privados de liberdade em uma Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) permite uma reflexão sobre as práticas que realmente são importantes para a reabilitação. A APAC faz parte de uma ética do cuidado que busca reconstituir laços familiares e sociais, incentivando o desenvolvimento de habilidades e valorizando a individualidade. Esse modelo alternativo rompe com o paradigma punitivo e fomenta um ambiente onde o respeito e o suporte ao desenvolvimento pessoal favorecem a transformação e a recuperação da identidade, demonstrando que um cuidado fundamentado na dignidade e na valorização humana é mais eficaz na promoção da reintegração e da prevenção à reincidência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os achados deste estudo sugerem a possível presença de colorismo no processo de seleção dos indivíduos privados de liberdade para vivenciarem o método APAC. Esse aspecto, caso confirmado, representa um obstáculo a ser superado para expandir o acesso à APAC, que se destaca como um modelo promissor de ressocialização, fundamentado em princípios éticos e educativos. O enfoque da APAC na promoção da autonomia, do protagonismo e do cuidado relacional favorece a construção de uma identidade mais saudável e contribui para a reintegração efetiva dos recuperandos à sociedade. Esses resultados evidenciam que a humanização do sistema prisional é não apenas viável, mas também essencial.
Sugere-se, portanto, a condução de novos estudos quantitativos com abordagens metodológicas transversais e de coorte para avaliar o impacto da APAC em termos de redução da reincidência criminal e reintegração social a longo prazo. Tais estudos também poderão fornecer uma compreensão mais abrangente do perfil sociodemográfico dos beneficiados, ajudando a identificar fatores que influenciam os resultados.
Dessa forma, a APAC configura-se como uma alternativa de execução penal mais humanizada, fundamentada em uma ética do cuidado que permite a reconstrução da identidade do recuperando. Ao promover a autonomia e o resgate da dignidade humana, o método visa à reintegração social, reafirmando-se como uma abordagem eficaz e necessária para o sistema prisional. Essa prática oferece aos recuperandos a possibilidade de uma metamorfose no cárcere, reconfigurando as trajetórias e promovendo uma reinserção efetiva na sociedade.
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Fomento e Agradecimento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).
Critérios de autoria (contribuições dos autores)
A designação de autoria deve ser baseada nas deliberações do ICMJE, que considera autor aquele que: 1. contribui substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; 2. na obtenção, na análise e/ou interpretação dos dados; 3. assim como na redação e/ou revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Em estudos institucionais (de autoria coletiva) e estudos multicêntricos, os responsáveis devem ter seus nomes especificados e todos considerados autores devem cumprir os critérios anteriormente mencionados.
Leyla Gabriela Verner Amaral Brandão
Contribui substancialmente na concepção e no planejamento do estudo
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Beatriz Santana Caçador
Contribui substancialmente na concepção e no planejamento do estudo
Obtenção, na análise dos dados
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Contribui substancialmente na concepção e no planejamento do estudo
Obtenção, na análise dos dados
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Ricardo Otávio Maia Gusmão
Contribui substancialmente na concepção e no planejamento do estudo
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Laylla Veridiana Castória Silva
Contribui substancialmente na concepção e no planejamento do estudo
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Maria José Menezes Brito
Contribui substancialmente na concepção e no planejamento do estudo
Obtenção, na análise dos dados
Redação e revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Declaração de conflito de interesses
Nada a declarar.
Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519
Rev Enferm Atual In Derme 2024;98(4): e024429
Atribuição CCBY