EDITORIAL

TRAJETÓRIA E OS DESAFIOS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS

TRAJECTORY AND CHALLENGES OF THE BRAZILIAN PSYCHIATRIC REFORM: CONTEMPORARY REFLECTIONS

TRAYECTORIA Y LOS DESAFÍOS DE LA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEÑA: REFLEXIONES CONTEMPORÁNEAS

https://doi.org/10.31011/reaid-2025-v.99-n.1-art.2442

Ítalo Arão Pereira Ribeiro1

Daniel de Macêdo Rocha2

 

1Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Piauí (PPGEnf/UFPI). Editor Científico da Revista Enfermagem Atual In Derme. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-0778-1447

 

2Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Piauí (PPGEnf/UFPI). Docente do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Coxim, Mato Grosso do Sul, Brasil. ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-1709-2143

 

 

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciada oficialmente nas décadas de 1970 e 1980, foi impulsionada por um contexto de efervescência social e política, tanto nacional quanto internacional. Inspirada por movimentos como a Psiquiatria Democrática italiana e consolidada pela Declaração de Caracas em 1990, a reforma visava romper com o modelo manicomial baseado no isolamento e na exclusão social. A promulgação da Lei 10.216, em 2001, representou um marco, garantindo os direitos das pessoas com transtornos mentais e propondo um modelo de assistência pautado na dignidade humana e na inclusão social(1-2).​

Os desafios que deram origem à Reforma Psiquiátrica refletem um passado marcado por práticas abusivas e uma concepção estigmatizante das doenças mentais. Instituições como o Hospício Pedro II, criado em 1852, e outros estabelecimentos semelhantes se tornaram sinônimos de abandono e maus-tratos. Até meados do século XX, o modelo de internação psiquiátrica era sustentado por legislações que legitimavam a exclusão social, tratando os indivíduos com transtornos mentais como uma ameaça à ordem pública. Essa perspectiva, aliada ao abuso de psicofármacos e à cronificação da doença, gerou consequências graves, como superlotação, segregação e perda de autonomia dos pacientes(3).

Na década de 1970, movimentos sociais e trabalhadores da saúde mental iniciaram uma articulação contra os abusos cometidos nos hospitais psiquiátricos. Eventos como o Congresso de Bauru, em 1987, deram visibilidade às violações e culminaram na criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que adotou como lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Foi nesse período que se iniciaram as primeiras iniciativas de serviços substitutivos, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). Essas unidades propunham uma abordagem comunitária, voltada para o cuidado integral e a reinserção social, em oposição ao modelo hospitalocêntrico(4).​

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988 fortaleceu os princípios que sustentam a Reforma Psiquiátrica, como a universalidade, a integralidade e a descentralização do cuidado. Contudo, o avanço da reforma enfrentou resistências, especialmente devido à predominância histórica dos hospitais psiquiátricos e à dificuldade de implementação das redes de cuidado comunitário. A década de 1990 marcou a expansão dos CAPS e a definição de políticas públicas voltadas para a desinstitucionalização, mas o financiamento limitado e a priorização dos leitos psiquiátricos em detrimento dos serviços substitutivos ainda representavam obstáculos significativos(5-7). ​

O marco legal mais importante da Reforma Psiquiátrica foi a Lei 10.216/2001, que assegurou os direitos das pessoas com transtornos mentais e estabeleceu diretrizes para a substituição progressiva dos manicômios por serviços de base comunitária. A lei promoveu uma nova compreensão das doenças mentais, fundamentada na inclusão, no respeito e na reintegração social. Entretanto, as transformações legislativas e administrativas subsequentes, como a Portaria Nº 3.588/2017, trouxeram preocupações ao reintroduzir elementos do modelo hospitalocêntrico, fragilizando os avanços conquistados(8-9).​

Recentemente, a Portaria Nº 757/2023 reverteu algumas das diretrizes que haviam gerado críticas, reafirmando o compromisso com os princípios da Reforma Psiquiátrica e fortalecendo a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa rede, composta por serviços como CAPS, Residências Terapêuticas e Programas de Volta para Casa, visa oferecer um cuidado humanizado e articulado, atendendo às diversas necessidades de saúde mental da população. Apesar desses avanços, a reforma ainda enfrenta desafios significativos, como o financiamento insuficiente, a resistência de alguns gestores e o estigma que persiste em torno das doenças mentais(10).

A experiência brasileira na saúde mental é reconhecida internacionalmente como um exemplo de luta por direitos humanos e inclusão social. No entanto, para consolidar as conquistas da Reforma Psiquiátrica, é necessário intensificar os investimentos em formação profissional, garantir o acesso equitativo aos serviços e fortalecer a participação da sociedade no controle social. A luta por uma sociedade sem manicômios não é apenas uma questão de saúde pública, mas também um compromisso ético e social com os indivíduos que enfrentam o sofrimento psíquico.

Por fim, esperamos que este editorial sirva como um convite à reflexão e à ação, reafirmando a importância de um modelo de cuidado que respeite a dignidade humana e promova a cidadania. O caminho é desafiador, mas a história da Reforma Psiquiátrica nos ensina que o engajamento social e político é capaz de transformar realidades e garantir um futuro mais justo e inclusivo para todos.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.

 

2. Barroso SM, Silva MA. Reforma Psiquiátrica Brasileira: o caminho da desinstitucionalização pelo olhar da historiografia. Rev SPAGESP. 2011;12(1):66-78.

 

3. Alves LC. O Hospício Nacional de Alienados: terapêutica ou higiene social? [Dissertação de mestrado]. Rio de Janeiro-RJ: Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz; 2010. 131p.

 

4. Correia LC, Sousa-Júnior JGF. O Movimento Antimanicomial como sujeito coletivo de direito. Saúde em Debate. Rev. Direito e Práx. 11;(03):1-30. doi: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/39138

 

5. Farinha MG, Braga TBM. Sistema único de saúde e a reforma psiquiátrica: desafios e perspectivas. Rev Abordagem Gestáltica. 2018;24(3):366-78. doi: https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n3.11

 

6. Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Cien Saude Colet. 2018 Jun;23(6):2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018

 

7. Oliveira AG, Conciani ME. Psychiatric reform and social participation: a case study. Cien Saude Colet. 2009 Jan-Feb;14(1):319-31. doi: https://doi.org/10.1590/s1413-81232009000100038

 

8. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2017.

 

9. Lima FL, Cabral MPG, Gussi AF, Araújo CEL. Digressões da Reforma Psiquiátrica brasileira na conformação da Nova Política de Saúde Mental. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2023;33: e33078. doi https://doi.org/10.1590/S0103-7331202333078

 

10. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 757, de 21 de junho de 2023. Dispõe sobre o reordenamento da política de saúde mental no âmbito do SUS. Diário Oficial da União; 2023.

 

Todos os autores contribuíram na composição do texto

 

Declaração de conflito de interesses

Nada a declarar.

Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519

Rev Enferm Atual In Derme 2025;99(1): e025002                    

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